Paulo Guinote - Público
Foi publicado há dias o diploma destinado a transferir competências em diversas áreas, a começar pela Educação, para os municípios. Esta é uma reforma que, como muitas outras, seguiu um processo de alegada negociação profundamente opaco e enviesado.
É comum a queixa contra as sucessivas reformas, mini-reformas, acrescentos, acertos e enxertos que tornam a Educação um labirinto legislativo, uma manta de retalhos, de leis, decretos, regulamentos e normativos, muitos deles incoerentes entre si. Isso não impede que, identificado o problema, ele seja regularmente agravado com novas “reformas”.
Em termos gerais, qualquer reforma, na área da Educação ou outra, deveria obedecer a alguns princípios que julgo por demais evidentes.
Antes de mais, a reforma pretendida corresponde a algum problema real ou é apenas um problema artificial? Neste caso, o processo deve acabar na ideia. Se o problema é real, convém fundamentar o seu grau de urgência e necessidade para melhorar a vida dos principais destinatários.
Em seguida, devem analisar-se as possibilidades de solução e respectivas alternativas. Procurar situações similares e medidas tomadas, no passado ou em outras paragens, assim como os resultados obtidos para perceber se são medidas adaptáveis à nossa realidade e ao momento presente.
Em terceiro lugar, devem consultar-se os interessados, quer os destinatários das medidas, quer os seus implementadores no terreno. É importante a mobilização de uns e outros, embora sem ser para consensos ineficazes.
Estabelecido um quadro global das medidas a implementar, convém analisar se o seu enquadramento é coerente na realidade existente e se a sua concretização não vai contra outras medidas ainda em desenvolvimento no sector.
Decididas as medidas, deve estabelecer-se um cronograma público da reforma e definir um período experimental seguido de uma avaliação, antes da sua expansão ou generalização. Recolher informação e reavaliar o processo, se necessário.
Ponto final ou preliminar: não iniciar um processo de reforma sem a devida avaliação do anterior.
No caso desta reforma, a sua necessidade está muito longe de estar provada, a menos que consideremos como “prova” dessa necessidade e bondade as profissões de fé dos seus promotores. Que, para condicionar o debate, não se coíbem de apelidar profusamente quem deles discorda de estalinistas, salazaristas, centralistas, anti-democratas e outras coisas assim.
Mas… quem pediu mesmo esta reforma? As escolas? Não me parece. As famílias? Tirando umas generalidades e este ou aquele projecto pessoal (nunca se sabe quando se pode acabar em presidente de uma Assembleia Municipal ou em vereador) nada se conhece a esse respeito. Os órgãos de gestão das escolas, @s director@s? Excepto o acima referido para o caso das famílias, desconheço de igual forma. Os autarcas? Talvez, embora publicamente o entusiasmo seja muito moderado enquanto o “envelope financeiro” não é definido com clareza, assim como a extensão do poder de mando e de eventuais aborrecimentos laborais. Os professores (reparem como os vou deixando para o fim)? Certamente que não na sua larga maioria, porque consta que são conservadores, acomodados e pouco empreendedores. Os “especialistas”? De quais falamos? Dos que vão dar “consultas” às autarquias interessadas ou os mais teóricos e menos pragmáticos?
A verdade é que esta reforma obedece a uma lógica perfeitamente anti-descentralizadora, pois não parte de qualquer apelo da própria sociedade e é mais um exercício de imposição top-down de algo que se considera há décadas muito bom para o desenvolvimento do país e faz parte de todas as retóricas políticas que acham por bem combater o “centralismo” desde que isso se traduza no aumento de oportunidades para a colocação de boys and girls, com crivo ou sem ele, pois os que se destinam a ser escolhidos, escolhidos serão.
Quem a defende é o próprio Estado Central para se alijar de encargos directos e responsabilidades diversas, não sendo raro encontrar entre os seus defensores – a par da regionalização – muita e boa gente que destruiu de forma activa ou por inércia os instrumentos de proximidade do MEC ou do actual alegado “regime de autonomia” das escolas.
O fim das Direcções Regionais de Educação (DRE) e dos Centros de Área Educativa (CAE), mesmo que substituídos por “equipas” e outro nível de “direcções”, foi uma boa decisão? Eram estruturas naturalmente erradas e ineficientes ou era o seu funcionamento que tinha sido capturado pela lógica das clientelas locais e regionais que agora se perfilam para os novos níveis intermédios da administração pública “descentralizada”?
O desprezo completo pelas Cartas Educativas e pelos Conselhos Municipais de Educação (excepto como correias de transmissão das vontades do poder local) que tem caracterizado a reorganização da rede escolar pública é por demais evidente e isso começou mal eles tinham sido criados.
Os Conselhos Gerais serviram para o quê, excepto para fazer constar às escolas e professores que eles eram encarados como uma minoria e se deveriam “abrir à comunidade”, mesmo que isso significasse nada?
Que interesse tem assinar contratos de autonomia, se desde as matriculas à gestão curricular, tudo pode vir a ser decidido pelo senhor vereador ou técnico superior da sua estimação, por vezes ex-professor em fuga dos corredores e salas de aula?
Em termos pessoais e de princípio, discordo de reformas que correspondem a ficções políticas, a pseudo-utopias particulares baseadas em conhecimentos superficiais de realidades externas, quantas vezes em rápida desactualização, destinadas a satisfazer este ou aquele grupo específico de interesse ou o ego pessoal de políticos em trânsito.
E é disso que penso tratar-se esta reforma destinada à “municipalização da Educação” (da Saúde e da Segurança Social, que nos pode trazer os “saudosos” atestados de indigência do Estado Novo).
Público,14/02/2015
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