Luciana Leiderfarb - Expresso
Bem-vindos à nova era, a das crianças que não têm tempo para brincar. E a dos adultos obcecados por ocupar-lhes os dias. Que mundo é este onde a brincadeira se tornou indesejável?

“Temos uma criança mais centrada nos dedos do que na locomoção, que é corporalmente passiva e sofre de iliteracia motora”, diz Carlos Neto, investigador da Faculdade de Motricidade Humana. A estudar este assunto há duas décadas, não constitui para ele novidade que as crianças de hoje sejam mais frágeis, mais imaturas e menos capazes de se controlar e autorregular. “As crianças são dotadas para brincar, é o seu estado natural. Precisam de ser perseguidas, de perseguir, lutar, correr, esconder-se, inventar. E a sociedade faz um esforço para as ter quietas e em silêncio”, comenta o especialista. Num quadro de quase permanente institucionalização, em que os mais novos passam na escola quase tantas horas diárias quanto um adulto no trabalho — de 27,5 a 30 horas semanais nos 1º e 2º ano do 1º ciclo e até 32,5 horas no 3º e 4º ano —, a configuração do seu tempo livre nesse espaço revela-se determinante. E a escola “ainda trata o recreio como algo avulso ao processo de ensino”, sem perceber que “o tempo para brincar deve ser bem estruturado e encarado como um contributo para se aprender dentro da sala de aula”.
No jardim de infância a situação é semelhante. Em Portugal, de fevereiro a maio — a estação invernal — as crianças passam apenas uma média de 10,8% do seu tempo em espaço exteriores, mais apetecíveis para a brincadeira livre. Este é um dos dados que constam do estudo “Interação Criança-Espaço Exterior em Jardim de Infância”, da autoria de Aida Figueiredo. A professora da Universidade de Aveiro concluiu ainda que, nas creches observadas, os bebés com menos de um ano só saíram ao exterior duas vezes em quatro meses. O estudo serve também para comparar realidades educativas opostas: se na Noruega, por exemplo, são exigidos entre 24,2 e 33 m2 por criança, em Portugal apenas são previstos 4 m2 por criança.
Quando é que o brincar livremente se tornou a atividade mais rara, menos praticada, na vida das crianças? E quando é que este quadro negro passou a ser encarado como normal? “O que não é normal é não se olhar para as crianças como cidadãos com direitos, isto é, com direito ao tempo livre e a fazer o que é próprio na infância: brincar, correr e dialogar com outros”, frisa Maria José Araújo. Para esta especialista em educação e professora no Instituto Politécnico do Porto, chegamos a um ponto em que o ato de brincar é excedentário e conotado como “fútil” pelos adultos, cuja ideia de competência “passa por estruturar a vida das crianças, não respeitando as suas necessidades nem proporcionando as condições para elas poderem brincar”.
E brincar está longe de ser fútil. “É uma atividade completa, em que as crianças aprendem a decidir, a negociar, a colaborar, a pensar e a criar; descobrem o que querem e como querem fazer; elaboram e exprimem as suas fragilidades e traumas; e começam a ler a realidade social, a interpretá-la e a agir sobre ela”, diz a investigadora. Pelo contrário, o não brincar ocasiona danos profundos no ser humano: “Gera crianças mais obesas, mais sentadas, com menos competências sociais e relacionais, mais isoladas e individualistas, e que em adultos estabelecem relações mais difíceis.” Promove, igualmente, uma pandemia de crianças cansadas e stressadas que acabam sendo alvo de medicação. “Estes miúdos vão para a sala de aula brincar, extravasar, porque não lhes foi dada outra hipótese. Então, medicamo-los para que sejam mais concentrados. Ora, uma criança que não brinca não aprende a concentrar-se”, reflete.
A neuropediatra, Manuela Santos, ressalva, por sua vez, a diferença entre brincadeira e entretenimento: “Hoje em dia vivemos o drama do tablet. As crianças habituam-se a olhar para um ecrã durante horas. É como ir ao ginásio e só mexer uma perna.” Do ponto de vista do desenvolvimento, esse tipo de interação com o mundo ‘enche’ a criança de respostas automáticas, inibindo-lhe a criatividade e abrindo caminho para uma maior incidência de problemas mentais no futuro. Carlos Neto aponta também a fraca capacidade empreendedora e a escassa autoestima de quem em pequeno não exercitou o brincar. E alerta: “A energia das crianças é natural e deve ser tolerada pelos adultos. O ser humano não nasceu para estar quieto. Estamos a criar monstros.
70
É a percentagem de crianças portuguesas que passam menos tempo ao ar livre do que os 60 minutos que
o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
recomenda para os reclusos.
10,8
É a percentagem de tempo médio
que as crianças de creches e jardins
de infância passam no exterior durante os quatro meses do inverno.
2
É o número de saídas ao exterior
dos bebés com menos de um ano
nas creches, durante os quatro
meses do inverno.
32,5
É o número de horas semanais
de aulas previsto na Matriz Curricular do 1º ciclo para os alunos do 3º
e 4º ano, incluindo as atividades
de enriquecimento curricular.
8
É o número de horas de brincadeira por semana que as crianças de todo o mundo perderam nos últimos 20 anos.
Fontes: Estudo SKIP — “Os Valores Das Crianças”, 2016; “Interação Criança-Espaço Exterior Em Jardim De Infância”, de Aida Figueiredo, 2015; Matriz Curricular Do 1º Ciclo, Direção-Geral Da Educação, 2016
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