O que faz com que uma criança seja feliz? O assunto não preocupa apenas pais e é cada vez mais tema de discussão nos meios académicos, em organizações internacionais e até na política.
A criança tem direito a que os pais lhe digam que não, a que não mudem de ideias dependendo do dia da semana, a ter refeições e tempo para conversar com eles, a que os pais não estejam cansados quando chegam a casa, a ter amigos, e a que, pelo menos um, seja especial. A lista não consta dos 54 artigos da Convenção sobre os Direitos da Criança mas aqui estão, segundo especialistas contactados pelo P2, alguns ingredientes do que podia ser uma receita para uma criança feliz. Hoje é Dia Mundial da Criança.
Proliferam os livros sobre como melhor educar os filhos. Muitos futuros pais, ou pais actuais em países mais ricos, têm os seus quotidianos preenchidos por microdecisões como: pôr a criança numa ama ou numa creche? Em que escola colocar o filho? Como escolher o melhor pediatra? Que actividades extracurriculares? Quais os brinquedos/livros mais adequados para o seu desenvolvimento? "O mercado solicita e é fácil deixar-se ir na onda e esquecer o mais importante", constata a socióloga da Infância do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, Natália Fernandes. E o mais importante para o bem-estar da criança é?
O assunto não preocupa apenas pais. Tem interessado cada vez mais académicos, organizações internacionais e políticos. Mas o enfoque tem estado mais centrado no lado negativo, ou seja, na pobreza infantil e na forma como a privação material tem impacto na vida dos mais novos. Melhor dizendo, tem-se sobretudo estudado o que é que as crianças não podem deixar de ter: uma casa condigna, cuidados de saúde, uma boa alimentação, acesso à educação.
Nos últimos anos a perspectiva mudou e olha-se cada vez mais para o reverso da medalha. Preenchidas as necessidades mais básicas, o que concorre para fazer uma criança feliz? Como se mede essa felicidade? Num estudo da Unicef (de 2007) que pretendeu calcular o bem-estar de crianças e adolescentes em 21 países ricos foram avaliadas, num rol de 40 indicadores, questões como: a percentagem de miúdos que comem a refeição principal do dia com os pais várias vezes por semana, a percentagem de miúdos que dizem que os pais têm tempo para conversar com eles. E aqui aproximamo-nos do que Natália Fernandes chama "o mais importante": "Ter tempo."
Amélia Bastos, uma das autoras do estudo Um olhar sobre a pobreza infantil - Análise das condições de vida das crianças (2008), nota que existe "uma organização social" que não fomenta "o investimento neste tempo" - Portugal é um dos países onde os baixos rendimentos levam a que os dois progenitores tenham que estar no mercado de trabalho e onde "a protecção da maternidade ainda é pouco eficiente".
Já Natália Fernandes aponta para "uma tendência excessiva para a institucionalização dos tempos livres das crianças". A saber: no afã "de querer dar aos filhos acesso a tudo, retiram-lhes tempo para estar em casa com a família". Os estudos para medir o bem-estar infantil não perguntam quantos meninos têm Inglês, Piano, Equitação, "actividades que consomem tempo que podiam passar em família. Há crianças com um autêntico horário de trabalho", comenta. "Muitas saem de casa às 8h30 e só voltam entre as 19h e as 20h."
Disciplina dos pais
A alta-comissária da Saúde, Maria do Céu Machado, recorre à sua experiência como pediatra, nos últimos anos no Hospital Amadora-Sintra. À pergunta "quanto tempo por dia está com o seu filho?" a resposta era quase invariável: entre uma a uma hora e meia, o tempo de dar banho, de jantar e pôr a criança a dormir. E aqui radica "um elemento essencial para o desenvolvimento harmonioso da criança": "A disciplina da criança é também a dos pais." Para o bem-estar da criança defende ser essencial a firmeza dos pais na imposição de limites e para isso é preciso disponibilidade. Exemplo: uma criança de três anos mexe no controlo remoto da televisão à segunda-feira e os pais dizem-lhe que não pode fazê-lo, mais à frente na semana, porque estão demasiado cansados para dizerem que não, já o autorizam. Este comportamento "cria insegurança". Os pais devem dar ordens "com firmeza", permitindo que a criança perceba a justiça do que se está a mandar, "mostrando que se gosta dela". Quando se chega à adolescência, mais importante se torna o dizer que não, defende a pediatra. "Na adolescência é fundamental eles precisarem de pedir 200 vezes para os pais dizerem que sim uma vez. É importante que seja assim."
Para pais que durante a leitura do texto fizeram um mea culpa saibam que, na perspectiva dos mais novos, Portugal é dos países desenvolvidos onde a relação com a família e os pares sai mais bem vista. Embora saia mal colocado no estudo da Unicef - é o quinto pior e à cabeça estão o Reino Unido e os Estados Unidos -, visto à lupa o relatório dá uma boa imagem da dimensão familiar portuguesa.
Um amigo "especial"
O que arrasta Portugal para o fundo da tabela são os maus números da pobreza infantil e do insucesso escolar. Mas "as relações com a família e amigos são pontos positivos na felicidade dos mais novos", constata a socióloga da Infância Natália Fernandes, um dado que "é recorrente. É uma especificidade portuguesa" em vários estudos.
Mas nem só da família vive uma criança. Estes estudos têm estado cada vez mais interessados na opinião dos próprios sobre o seu bem-estar. Num inquérito de 2008, feito junto de miúdos entre os 10 aos 16 anos, estes valorizam, além da família, os amigos, dando muita importância ao ter "um amigo especial", sublinha Margarida Gaspar de Matos, psicóloga da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa. "Uma criança sem amigos é uma criança em risco. Ter um melhor amigo é um factor de protecção contra a tristeza e contra o envolvimento em violência, quer como vítima quer como agressor."
Curioso é verificar que, questionados os pais sobre a mesma questão, a importância dada aos amigos dos filhos é menor. "Até podem achar que os amigos são a fonte de todo o mal. Os amigos são mais importantes do que os pais julgam."
Talvez porque a escola é o sítio onde se arranjam amigos, os mais novos gostam muito de lá estar, nota Margarida Gaspar de Matos, sobretudo "dos recreios, das actividades extracurriculares e de algumas aulas especiais. Gostam da escola mas não das aulas. Há aqui um desequilíbrio". Ainda assim, comparando miúdos das mesmas idades que frequentam o ensino com outros que já não vão à escola, é notório que os primeiros têm graus de satisfação e bem-estar maiores. "A escola é importante para o desenvolvimento pessoal. A escola é mais do que as aulas."
No mesmo inquérito constata-se que para os mais novos a questão financeira dos pais não é tão importante como é para os próprios pais. Mas a directora executiva da Unicef em Portugal, Madalena Marçal Grilo, não tem dúvidas de que "a crise económica veio agravar a vida das crianças". É sabido que "quando há situações de instabilidade e insegurança laborais isso reflecte-se nos pais e na sua menor disponibilidade para dar atenção aos filhos".
Os efeitos da recente crise económica internacional ainda estão por medir. A norte-americana Foundation for Child Development publicou no ano passado um relatório sobre a antecipação dos impactos da recessão 2008-2010 sobre o bem-estar da criança. Os mais óbvios são o aumento do desemprego e a descida de rendimentos do agregado familiar, mas também a tensão familiar do impacto financeiro conduz a maiores taxas de divórcio, maiores taxas de abandono escolar e mais obesidade infantil, isto porque os pais compram mais comida fast food porque é mais barata do que a saudável.
Catarina Gomes - Jornal Público
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