Santana Castilho - Público
Depois de os finlandeses terem decidido substituir nas suas escolas papel e lápis por teclado de computador, para as crianças aprenderem as primeiras letras, foi anunciado novo contributo insólito: o Governo do Reino Unido quereria que educadores de infância e professores identificassem crianças potencialmente terroristas. Nem os bebés escapariam a tão estranha teorização pedagógico-securitária. Os educadores, que lá como cá já são tudo e mais alguma coisa, passariam agora a espiões dos espíritos dos recém-nascidos e das circunvoluções, eventualmente radicais, dos seus cérebros em formação.
A confirmar-se esta aberração, estaria mais do que justificado o título do PÚBLICO de 4/1/15: “Governo britânico quer infantários a detectar crianças em risco de se tornarem terroristas”. Ou o do i, de 9/1/15: “Creio que em Portugal não se aprovaria tal idiotice”.
Mas a verdade é que nem os títulos nem os textos têm sustentação na realidade e no documento que os origina. O Prevent Strategy, datado de Junho de 2011, note-se bem, terá ganho actualidade, eventualmente, pela emergência do autoproclamado Estado Islâmico e pelas recentes acções terroristas. Mas quem se dê ao trabalho de ler as suas 116 páginas ou as sete que tratam especificamente da situação escolar (páginas 65 a 71) verificará facilmente ser impróprio, por completamente descontextualizado e sem relação com o que lá está, perguntar, por referência a docentes, se “é suposto denunciarem bebés que apareçam a balbuciar coisas que pareçam extremas" ou sugerir que o Governo do Reino Unido pretende “transformar os professores em polícias da mente e num exército involuntário de espiões”. E se trago o assunto à colação é porque nos interessa, por ser mais um exemplo da revisão que, país após país (Suécia, Reino Unido e Estados Unidos da América, entre outros), se vai fazendo à forma ligeira como se abriu à iniciativa privada, com financiamento público, a responsabilidade de os Estados proverem o ensino das suas crianças. Com efeito, o que o documento manifesta é a preocupação por uma acção inspectiva, conduzida em 2009 pelo Office for Standards in Education, Children’s Services and Skills (Ofsted), ter sugerido que o extremismo é muito mais um problema de instituições de ensino privadas do que públicas. Pode ler-se no documento que cerca de um terço das escolas financiadas com dinheiro público estão associadas a organizações religiosas e que muitas dessas escolas dão prioridade de admissão aos alunos da respectiva crença; que as crianças inglesas passam uma substancial parte do seu tempo em actividades extra-escolares; que cerca de 100.000 crianças inglesas frequentam uma das 700 a 2000 madrassas (escolas religiosas muçulmanas) que se calcula existirem no Reino Unido; que vários relatórios referem que algumas dessas escolas promovem pontos de vista extremistas, particularmente contra os que não são muçulmanos, dando como exemplo concreto uma investigação da BBC, que denunciou a utilização de textos anti-semíticos e homofóbicos. O documento recorda que um dos bombistas do 7 de Julho de 2005, quando várias bombas explodiram em locais públicos em Londres, matando 52 pessoas e ferindo 770, trabalhava como monitor de ensino numa escola de Leeds.
O que é pedido aos professores não é que escrutinem cérebros de crianças como, de modo redutor e enviesado, se dá a entender nos textos em análise. O que é pedido aos professores é que estejam atentos e vigilantes perante iniciativas doutrinárias, que introduzam nas escolas do Reino Unido ensinamentos contrários à tolerância, ao respeito pelos outros e aos valores humanos fundadores da civilização ocidental. Na impossibilidade de o fazer na totalidade, cito, em tradução livre, mas que não desvirtua o sentido do que lá está escrito, algumas das intenções mal tratadas nos textos publicados. E faço-o, repito, por merecerem reflexão nossa, numa altura em que assistimos em Portugal a uma competição malsã e desigual entre a escola pública e o ensino privado:
– Garantir uma efectiva auditoria, financeira e não financeira, de modo a minimizar o risco de que aqueles que têm visões inaceitáveis possam abrirfree schools ou ganhar controlo sobre academias ou outras escolas financiadas com dinheiros públicos;
– Trabalhar com a Charity Comission de modo a garantir que escolas sob sua jurisdição, com estatuto de instituições não lucrativas, cumprem a lei que as rege;
– Trabalhar no sentido de reduzir o risco de crianças e jovens serem expostos a pontos de vista extremistas, quando frequentam actividades educativas exteriores à escola;
– Ajudar os serviços destinados às crianças a trabalhar com as escolas e outras instituições e serviços para identificarem crianças em risco de radicalização e tomarem as medidas que forem necessárias para as proteger.
Público, 14/01/2014
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