Os pais da exclusão: o choque de civilizações
O (escasso) debate entre David
Rodrigues e Luís de Miranda Correia, no passado mês de Abril de 2018, a
respeito das alterações previstas para a Educação Especial, entretanto já
consumadas, não representou apenas o diálogo entre dois académicos consagrados,
mas sim um choque de civilizações entre dois mundos antagónicos.
O
decreto-lei n.º 54/2008, de 6 de Julho, eliminou a pedra angular da escola
inclusiva em Portugal. De uma forma simplificada, vou procurar demonstrá-lo em
vários pontos.
I
– O novo decreto-lei é profundamente ambíguo. É de resto inaceitável que a
recente publicação do “Manual de Apoio à Prática” não tenha esclarecido todas
as dúvidas existentes, servindo apenas para demonstrar, se ainda subsistissem
dúvidas, que estamos perante um amontoado de divagações teóricas e
metodológicas, atravessadas pela estulta pretensão de criar um admirável mundo
novo.
II
– Pretendendo acabar com todas as categorizações, a legislação acaba, de uma
penachada, com o conceito de alunos com “Necessidades Educativas Especiais”,
prevendo a sua reavaliação, de modo a que sejam depois adoptadas novas medidas
(universais, selectivas ou adicionais). No caso das medidas mais restritivas (selectivas
e adicionais), a legislação prevê até que isso seja concretizado antes do
início do próximo ano lectivo. O que se revelou de todo impossível.
III
– Os Centros de Recursos para a Inclusão que até agora, através de vários
protocolos, apoiavam os alunos com Necessidades Educativas Especiais, nas mais
variadas valências (Terapia da Fala, Psicologia, Psicomotricidade,
Fisioterapia…) poderão passar a actuar apenas nos casos mais graves (alunos que
beneficiarão de medidas adicionais). A confirmar-se, isto representará uma
poderosa machadada no direito de todas as crianças e jovens, sobretudo daqueles
que provêm de famílias incapazes de suportar as despesas inerentes aos
imprescindíveis apoios, que terão de passar a ser prestados em contexto
exterior à escola.
IV
– As incongruências que atravessam o novo diploma são evidentes, fruto da
ignorância completa de quem o arquitectou em relação à realidade escolar. Dou
um exemplo: a nova legislação prevê que os Centros de Apoio à Aprendizagem
promovam e apoiem “o acesso ao ensino superior”. Mas se estes Centros estão
reservados a crianças e jovens com dificuldades significativas na aprendizagem,
que exigem a mobilização de medidas que comprometem as aprendizagens essenciais
(antigos Currículos Específicos Individuais), como é que se pode prever uma tal
situação? Isto não é apenas uma utopia, é alimentar falsas expectativas,
sobretudo junto de famílias que tantas batalhas travam no quotidiano. Falsas
expectativas que poderão ajudar a criar crianças e jovens mais infelizes e
desajustados do ponto de vista emocional, porque repetidamente obrigados a
tentar ser doutores, quando, na realidade, necessitam, sobretudo, de
desenvolver competências específicas que os ajudem a ser autónomos e
desenvolver o seu próprio potencial.
V
– A nova legislação e os seus arautos arvoram-se nos verdadeiros defensores da
inclusão, mas não verdade são os seus coveiros. São os pais da exclusão. As
suas teorias eivadas de uma linguagem hermética, gongórica, parecem incluir
tudo, mas na verdade não dizem nada de substantivo. Acabaram-se as
categorizações – proclama David Rodrigues e Tiago Brandão, que preside ao Ministério Fantasma, apressa-se a
assinar por baixo. Doravante, deixarão de existir alunos com Necessidades
Educativas Especiais! Todavia, muito brevemente, os alunos voltarão a ser
avaliados por uma “Equipa Multidisciplinar” e em função dos vários elementos
serão definidas as medidas, mais ou menos restritivas, entendidas como
pertinentes. Isto também não é categorizar? Eis um diploma repleto de tantas
palavras novas para recuperar teorias velhas, redigido de uma forma
suficientemente ambígua para permitir quase tudo e o seu contrário. O que pode
revelar-se extremamente pernicioso, nestes estranhos tempos em que vivemos, em
que quase nada é o que realmente parece. Caso não prevaleça o bom senso…
VI
– Jamais poderá existir um efectivo trabalho de inclusão enquanto as salas de
aulas estiverem sobrelotadas com 25 ou 30 alunos. Trabalho “multinível”, de
outro modo, é um eufemismo, por muito que os teóricos do pós-modernismo (e da
“pós-verdade” socrática!) defendam o contrário. Essa é uma das prioridades para a
efectiva inclusão, para a qual não é necessário desperdiçar dinheiro em equipas
de teóricos a preparar mais e mais legislação.
VII
– No seu artigo “Aprofundar a inclusão com o que se sabe”, dado à estampa no Público, em 18 de Abril de 2018, David
Rodrigues lançou a seguinte farpa a Luís de Miranda Correia: “Há, enfim,
pessoas que perderam o comboio, mas, mesmo assim, acham que estão a viajar em
primeira classe”. O professor David Rodrigues faz, portanto, parte dessa elite do
futuro, desse mundo de progresso, desse admirável mundo novo da inclusão,
enquanto os outros, como Luís de Miranda Correia, representam apenas uma sombra
do passado. O problema, caro David Rodrigues, é que sempre que o Homem procurou
eliminar tudo o que o precedia e insistiu em construir esse tal mundo novo
nasceram monstruosidades. Infelizmente, caro David Rodrigues, tenho fortes
argumentos para acreditar que a sua inclusão e dos quejandos teóricos que o
acompanham, pacientemente forjados nesse labiríntico trilho das ciências da
educação em que estamos embrenhados, faz parte dessas monstruosidades. Aquando
da consulta pública do projecto da actual legislação atrevi-me a sugerir: “a proposta apresentada deveria ser pura e
simplesmente ignorada, abrindo um período para ouvir os docentes que trabalham
na área, de modo a introduzir alterações cirúrgicas num dos mais
importantes pilares da escola inclusiva em Portugal”. Hoje, apesar de
reconhecer pontuais aspectos positivos que a nova legislação possa trazer (caso
de uma maior uniformidade ao nível do processo de certificação de competências
de todos os alunos aquando da saída do sistema educativo), hoje, repito,
voltaria a subscrever aquelas palavras, mas ainda, se possível, com maior
convicção.
VIII
– Dificilmente – atrevo-me a arriscar – a nova legislação agora divulgada será
aplicada na Região Autónoma dos Açores (RAA). O “Grupo de Trabalho” criado pelo
despacho n.º 7617/2016 para gerar o novo diploma teria evitado muitas
canseiras, despesas e asneiras se tivesse começado, por exemplo, por estudar
afincadamente a legislação promulgada a nível da RAA a respeito da Educação
Especial. Talvez assim os seus membros tivessem percebido que o anterior
decreto-lei n.º 3/2008 precisava apenas, reforço, de alguns retoques e não de
ser eliminado.
XI – Os professores estão
(continuam) em luta. Tal como os polícias, os profissionais da saúde… tal como
o país inteiro deveria estar em luta. Um combate justo, num momento em que se
destrói o que de melhor existe no sistema público nacional e, simultaneamente,
se continuam a desperdiçar milhões e milhões. É fundamental que os motivos que
desencadeiam essas lutas cheguem à população, para além das simples (embora
justas) reivindicações salariais e de contagem integral do tempo de serviço
prestado. No caso do Ensino, é fundamental que as pessoas compreendam que os
professores necessitam de ter tempo para continuarem a aprender, para depois ajudarem
os alunos a pensar. É fundamental que a Escola passe a ser um local democrático
(os órgão directivos não podem continuar a ser nomeados), que os programas
curriculares sejam ajustados e adequados à faixa etária dos alunos, que haja
tempo para aprender a reflectir, ler, escrever, calcular. É fundamental que
todos os profissionais sejam reconhecidos e respeitados. É fundamental que o
país compreenda que, por muitos IP3’s
que se modifiquem, injectando milhões e milhões para engordar determinados
indivíduos, continuarão a morrer pessoas nas estradas enquanto os cidadãos não desenvolverem
outra consciência cívica. E que para isso, mais do que uma política de
melhoramentos materiais, é fundamental investir numa política educativa séria e
rigorosa.
“– Diz-me o berço em que nasceste,
dir-te-ei onde chegarás”: será esta a máxima que queremos deixar aos
historiadores do futuro que estudarem a nossa época, plena de palavras
democráticas e inclusivas, mas esvaziadas de qualquer significado?
Os
admiráveis mundos novos acabam quase sempre por recuperar o lado mais negro da
História. Uma das grandes dificuldades em identificá-los é que na actualidade
aparecem quase sempre travestidos com palavras de civilização, caso da
inclusão…
Quanto
menos nos preocuparmos agora, maior será a factura que pagaremos nas próximas
décadas.
Renato
Nunes
(renato80rd8918@gmail.com)
(recebido por e-mail)