A melhoria das condições de vida é um dos fatores que tem levado o homem a severas transformações sociais, económicas e até políticas. E é para isso que ele luta e trabalha. Por detrás dessas condições de vida está a ideia de felicidade. No fundo, o que o move é a felicidade. Mas, por vezes, ela não está onde julga estar – no mais complexo, no mais acessível, no mais confortável. Também não está na precariedade, na fome, na ignorância, claro. Pode simplesmente estar naquilo em que se acredita ser bom e bem feito.
Quando eu andava na escola primária (na altura assim designada), os alunos usavam bata para disfarçar as roupas que traziam dos irmãos ou dos vizinhos mais abastados. Note-se que já ninguém ia roto ou descalço. Mas as camisolas eram mais curtas nas mangas e as calças tinham em baixo as marcas de bainhas descidas vezes sem conta. Quando se rasgavam nos joelhos, levavam um remendo, às vezes em forma de boneco. Nos intervalos, corria à volta da escola, sem gradeamento, no meio do pó branco, chapinhava nas poças de água, subia a um ou outro morro e ia até à casa de banho, pequena, sem apetrechos. O lanche era pão com manteiga que levava de casa e leite aquecido pela auxiliar numa grande panela de alumínio, servido em copo de plástico por uma concha. Todos bebiam leite e comiam pão. Houve um ano em que serviram bolachas de água e sal e queijo, mas nem todos gostavam. As crianças da altura estavam mais habituadas a sopas e a outras comidas quentes. Frio, só mesmo o pão. Não havia bolicaos nem donuts nem kinders. A pequena bolacha Maria aquecia-se na boca, ao ser mastigada devagar. Ia-se a pé para a escola de pasta de uma só cor: castanha, azul, ou preta (na altura não havia mochilas com super-homens ou barbies). Sendo uma pasta, servia para levar os livros e cadernos e era o que bastava. As horas dentro da escola, por vezes com chuva a cair em certos cantos, eram passadas a ler textos (todos os dias e em vários momentos), a fazer exercícios de compreensão textual, exercícios de caligrafia, exercícios de ortografia, redações e mais redações, reduções e outros problemas de matemática. Aliás, não havia uma tarde em que não se resolvessem problemas de matemática no quadro, lembro-me bem (e eu que não gostava de matemática! Paciência, minha filha!). Às vezes, às sextas, fazíamos trabalhos manuais (ou de expressão plástica, como queiramos chamar). Tudo isto só com uma professora. Não conheci outros na escola primária.
A música era dada no recreio, quando as rodas se faziam acompanhar por canções ritmadas, que já eram cantadas no tempo dos pais. A natação era treinada quando corríamos à chuva. A atividade física era muito acentuada: vários quilómetros de corrida e de bicicleta, subida a árvores e a telhados de casas velhas, cambalhotas no chão do quarto, nos intervalos dos trabalhos de casa, vários saltos a pé coxinho e metros e metros de saltos em altura. Não conseguíamos engordar à custa de tanto treino. E quanto mais fazíamos mais o corpo pedia.
Deus nos livre de voltarmos a este tempo!
Hoje é bom ver as escolas coloridas, as mesas de trabalho coloridas, as mochilas coloridas, os dossiês, estojos, pastas, canetas coloridas. As roupas coloridas e sem remendos. As casas de banho bem apetrechadas. Os recreios vedados, vigiados, com escorregas. Horas marcadas para a atividade física, para a música, para o inglês, para o judo, para as TIC. Nas aulas, espaço próprio para as expressões (plástica, dramática…). No fundo, espaço para vários saberes, de vários agentes. Nas mochilas, espaço para materiais escolares, manuais escolares, fichas de trabalho para as aulas, para casa. Em casa, espaço para as fichas das férias…
O investimento foi grande. O esforço tem sido grande.
Deus nos livre de sairmos deste tempo.
O que aconteceria se voltássemos ao tempo do trabalho efetivo de leitura, de escrita e de matemática nos cadernos diários e no quadro preto, do simples pão com manteiga e do leite aquecido na panela? E das batas? E das poças de água? E da atividade física feita nas ruas e vielas?
Não aguentaríamos. Ninguém, com consciência, estaria preparado para isso. Nem eu, nem os professores, nem os pais, nem a sociedade. Só mesmo as crianças, porque nasceram simples e não recusam a simplicidade do que pode ser bom, quando bem feito. Mas essas não têm voto na matéria.
Inês Silva
Sem comentários:
Enviar um comentário