Paulo Guinote - Público
Esta semana decorrem negociações entre sindicatos e Ministério da Educação e Ciência (MEC) a respeito do projecto de uma pretensa prova de ingresso na carreira docente que mais não é do que de uma prova de acesso ao exercício da docência, pois não permite a entrada na carreira mas apenas retirar candidatos a esse exercício.
Apresentada como destinada a introduzir rigor na selecção daqueles que poderão vir a exercer a docência, por se considerar que a sua formação é muito desigual em termos de qualidade e de avaliação final, esta prova não passa de uma forma preguiçosa de aparentar o tal rigor, ocultando que não foi feito o que deveria ter sido feito há muito para que a formação de professores se adequasse na quantidade e qualidade às necessidades existentes.
Vou em seguida repetir alguns pontos básicos que me fazem discordar de uma prova deste tipo:
• Os actuais cursos de formação de professores são especificamente delineados para a docência e os seus diplomados saem com uma profissionalização e não com uma licenciatura numa qualquer área disciplinar como aconteceu durante muito tempo. Mesmo os professores que assim se licenciaram e mesmo que ainda sejam contratados já foram obrigados a fazer profissionalizações indicadas e aprovadas especificamente pela tutela. Não me parece correcto deixar profissionalizar milhares de pessoas para depois lhes negar o exercício dessa profissão em nome de um mecanismo teoricamente aferidor do que aprenderam, sem que isso passe sequer por uma avaliação prática do seu trabalho em sala de aula.
• O Estado refugia-se na autonomia do ensino superior – que desrespeita em tanta outra coisa – para justificar a não avaliação, durante muito tempo (a da agência A3ES é recente e tem contornos por vezes curiosos), do funcionamento dos cursos de formação de professores, quantas vezes criados – é bom que se diga – para manter certos mandarinatos académicos, quantos deles baseados em clientelas político-partidárias, centrais ou regionais. Apresentar dúvidas sobre a qualidade desses cursos e sobre a avaliação dos seus diplomados, não me parece a atitude mais honesta por parte de quem se absteve de cumprir os princípios mais básicos da sua missão de certificação e regulação.
• Considero ser de uma hipocrisia profunda que a prova de ingresso ao exercício da docência seja defendida – e muito possivelmente colocada em prática – por gente que fez toda a sua vida profissional a formar professores e agora quer fazer um exame para demonstrar a má qualidade do trabalho que fez. Ou que insinua “outros” fizeram. Até porque algumas dessas pessoas, em boa verdade, não sabem o que é leccionar numa escola básica há muito tempo, apesar de todas as teorizações debitadas em auditórios com escasso contraditório, pois a sua ligação ao quotidiano escolar do ensino básico e secundário é remota.
• Uma prova de tipo selectivo para determinar quem pode exercer ou não a docência só faz verdadeiro sentido em um de dois momentos: ou perto da conclusão do curso, num contexto de avaliação em conjunto com um estágio prático, ou, mais tarde, numa situação de verdadeira possibilidade de candidatura e ingresso na carreira. Feita a meio do caminho, numa espécie de limbo, em que nem sequer está em causa a possibilidade de ocupar uma vaga real, uma prova deste tipo roça a desonestidade e é de uma evidente falta de respeito em relação a todos aqueles que cumpriram um curso de profissionalização de cuja qualidade o Estado só pode duvidar na directa proporção do incumprimento das suas obrigações.
Dois reparos, para concluir:
Continua a não existir um trabalho de prospectiva das necessidades de professores a médio prazo, com base em factores demográficos objectivos, que ultrapasse o achismo de alguns indicadores colhidos quase ao acaso para uma qualquer entrevista de passagem. É verdade que tal prospectiva só faz sentido se o currículo do ensino básico e secundário não estiver sujeito aos humores anuais d@s ministr@s de passagem, dos grupos de pressão mais activos ou de imposições orçamentais exógenas ditadas por prioridades políticas mais ou menos adversas.
A carreira docente merece ser respeitada e para isso é indispensável que a qualidade dos seus profissionais seja reconhecida. O que passa pela regulação da qualidade e quantidade da oferta nesta área e não por uma prova feita para, de forma preguiçosa e afastada da prática pedagógica, se eliminarem pessoas com uma longa formação profissional vocacionada especificamente para a docência e muitas vezes com maior prática pedagógica do que os seus anunciados examinadores.
Público (negrito nosso)
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