PAULO GUINOTE
O anúncio pelo Governo de algo parecido com a generalização do cheque-ensino na Educação marca uma fase nova num processo em que, ainda deixando muitas pontas por apurar, se abre de forma mais evidente a porta para o financiamento do ensino privado e não, como se afirma de forma mistificadora, os alunos que pretendam escolher a escola da sua preferência.
Vou sintetizar a base ideológica de quem defende a existência da mercantilização da Educação ao abrigo de um aparente princípio filosófico da “liberdade de escolha”.
• O valor da liberdade é superior a qualquer outro.
• A concorrência num mercado alargado da Educação leva naturalmente à selecção dos melhores e à eliminação dos piores desempenho.
• As famílias têm o direito a escolher as escolas para os seus filhos, devendo o Estado subsidiar directamente essas escolhas em vez de as condicionar com a existência de um serviço universal de escolas públicas.
• A gestão privada é financeiramente mais eficaz do que a pública, pelo que o Estado poupará com essa opção.
O que oculta, de forma selectiva, esta posição:
• Que a liberdade no campo social e económico, ao não ser regulada, traduz-se na lei do mais forte e no esmagamento dos mais fracos. Na Natureza, a liberdade sem entraves é o campo ideal dos predadores.
• Que a concorrência não impede que, naturalmente, num qualquer conjunto (de escolas, por exemplo), exista sempre um topo e uma base, piores e melhores. E que há uma opção de fundo a fazer quanto a escolhermos se queremos que todo o conjunto melhore de desempenho ou se não nos incomoda que a desigualdade aumente, desde que o topo avance ainda mais.
• Que o apoio às famílias deve ser feito de forma diferenciada, numa perspectiva de discriminação positiva dos mais desfavorecidos no acesso às ofertas educativas mais adequadas, tendo sido essa a tendência dominante na introdução e desenvolvimento da liberdade de escolha nos EUA, por exemplo.
• Que a gestão privada é tanto mais eficaz quanto esmaga os direitos laborais da maioria do pessoal docente e não docente, através da sua precarização e proletarização salarial.
Mas há mais do que isto, pois a investigação tem sido vasta nesta matéria e existem muitos dados disponíveis, mas nem sempre devidamente divulgados, que apontam na sua globalidade para o seguinte:
• A introdução da liberdade de escolha não melhora globalmente os resultados dos alunos, apenas se verificando uma distribuição mais diferenciada dos resultados, com o aumento da desigualdade dos desempenhos, contrariando a teoria de que as escolas piores desaparecem e são substituídas por outras melhores. O que acontece é um reforço da distribuição piramidal dos resultados.
• A introdução de cheques-ensino de tipo universal está associada a um aumento da guetização socio-educativa, com o reforço do carácter exclusivista das comunidades educativas, pois as famílias optam mais por escolas com um perfil homogéneo de frequentadores do que por ofertas de maior diversidade pedagógica. Em alguns países essa introdução está associada a quebras nos resultados globais dos alunos (a Suécia é o exemplo mais evidente).
• Os cheques-ensino são muito mais eficazes quando direccionados para minorias étnicas ou culturais em risco de insucesso escolar ou com problemas de inserção nas comunidades envolventes ou para grupos economicamente mais desfavorecidos do que quando são concedidos de forma indiferenciada e transversal.
• Em muitos países, a gestão privada das escolas financiadas pelo Estado não pode levar à acumulação ou distribuição de lucros pelos stakeholders, sendo os gestores remunerados pela sua função e não recompensados enquanto proprietários. É o caso, por exemplo, da Holanda. Este princípio visa a diminuição do risco de gestões economicistas viradas para o mínimo custo possível em detrimento da qualidade pedagógica e dos recursos humanos.
É muito importante deixar claro que, na situação actual, a liberdade de escolha não está sequer assegurada entre as escolas públicas, pois a autorização para abertura de turmas foi controlada ao pormenor, empobrecendo a oferta e levando ao afastamento de professores para situações de mobilidade. Igualmente importante é afirmar sem pruridos que a rede pública de ensino poderia receber mais alunos sem aumento dos custos para o Estado, sendo que a actual opção do Governo/MEC é, paradoxalmente, propícia ao aumento dos encargos públicos.
Em suma: o que está em causa é um combate ideológico, com reflexos económicos, em defesa da mercantilização da Educação e de uma concorrência que leva ao aumento dos fenómenos de desigualdade, em que se reforçam os mecanismos de diferenciação dos melhores em detrimento dos mais fracos. Do outro lado, sem se ficar anquilosada numa fórmula arcaica de Escola Pública, está quem considera que a Educação pode incluir mecanismos de concorrência regulada que vise uma melhoria global do desempenho, apoiando os mais carenciados no sentido da ultrapassagem das suas dificuldades.
É um combate Direita/Esquerda se o entendermos como uma oposição clássica entre os interesses particulares (privados) e a cooperação (pública) para a melhoria de todos. Só de forma acessória se trata de uma discussão em torno do papel do Estado, que acaba por pagar sempre o cheque. É um combate que tem traços muito específicos do nosso tempo, mas também uma indesmentível dimensão ética que está para além das disputas transitórias pelos milhões do orçamento do MEC.
Público (negrito nosso)
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