Pagar escolas para todos ou escolas para alguns?
José Vítor Malheiros - Público
1. Na manifestação que teve lugar no domingo passado em Lisboa em defesa da renovação dos contratos de associação do Estado com escolas privadas (sejam eles necessários ou não), o deputado do PSD Duarte Pacheco afirmou que não tinha esperança de que o Ministério da Educação mudasse de posição porque “está comandado por forças estalinistas”.
Todos nós já ouvimos o deputado Duarte Pacheco enunciar originalidades diversas sempre com uma cara muito séria (é provável que o deputado pense que “seriedade” é algo que diz respeito à expressão facial) mas vale a pena determo-nos nesta expressão, porque ela representa o eixo central da propaganda do PSD, como se depreende dos cartazes da JSD que mostram o dirigente sindical Mário Nogueira fardado à Estaline e um ministro da Educação em jeito de marioneta.
Passemos por cima da infantilidade da análise política, do despropósito da analogia histórica, da impropriedade da comparação ideológica, da desproporção da comparação, do desesperado desejo de insultar que me faz lembrar uma anedota do Jaimito que não posso contar aqui. A questão é que existe neste discurso uma mensagem política que pretende não apenas incutir o medo mas identificar qualquer intervenção do Estado não só com o papão comunista mas com o totalitarismo sanguinário (mesmo quando se trata apenas de garantir uma boa gestão da coisa pública), o que faz dele um verdadeiro apelo às armas. Quando Duarte Pacheco denuncia o comando da 5 de Outubro por “forças estalinistas” está a tentar incitar os cidadãos portugueses a reagir contra o ministro Tiago Brandão Rodrigues como se este fosse um dos mais terríveis tiranos da história. Isso será ridículo, mas é algo mais do que um recurso retórico: é a mais veemente incitação ao combate político que se pode imaginar sem chegar ao apelo à revolta armada.
Mas não há razão para alarmes. Isto significa apenas que o PSD se sente em perigo como grande partido dos interesses ilegítimos e dos rentistas do Estado. É uma boa notícia.
2. É preocupante ver reaparecer no discurso histérico do PSD e do CDS em defesa da escola privada financiada pelo Estado e de ataque à escola pública os mesmos papões comunistas de que o Estado Novo usou e abusou. Seria bom lembrar que Mário Nogueira é livre de pertencer ao partido que queira e que, se não é ministro da Educação, nada o impediria de o ser, porque nem os comunistas possuem menos direitos políticos que os bem nascidos do PSD e do CDS nem estes possuem um direito divino a integrar os governos de Portugal - muito menos quando não possuem o necessário e democrático apoio parlamentar.
3. É curiosa, surreal, a ideia da direita de que o tratamento dado pelo Estado à escola pública seria ilegítimo porque as privilegiaria face às escolas privadas. Os neoliberais defendem que a escola pública seja tratada em pé de igualdade com as escolas privadas (ou seja: que os impostos de todos nós alimentem as empresas privadas proprietárias de escolas). O que acontece, por muito que isso aborreça os neoliberais de serviço - e eles têm estado diligentemente de serviço - é que o Estado democrático possui um estatuto diferente das empresas privadas não só porque lhe cabe defender o interesse público de todos os cidadãos sem excepção mas porque emana de uma vontade colectiva democraticamente definida, que decide os valores que a sociedade quer ver promovidos.
4. Finalmente, não tem o menor sentido justificar a defesa da escola pública com o seu custo inferior, porque o valor da escola pública não é o seu preço. A comparação pode ter interesse mas não pode ser a base de qualquer opção política. Mesmo que a escola pública custasse o dobro da privada ela deveria continuar a ser suportada pela comunidade. Porque a escola pública possui um caderno de encargos que nada tem a ver com a escola privada. A escola pública possui, antes de mais, o nobre objectivo de servir todos os cidadãos: os bons alunos, os maus, os péssimos, os indisciplinados, os imigrantes, os ciganos, os pobres, os filhos dos analfabetos, os toxicodependentes, os deficientes, os violentos, os doentes, os contestários. A escola privada é um negócio e tem o direito de o ser. A escola pública tem o dever de não o ser. A escola privada pode seleccionar os mais endinheirados, por exemplo. A escola pública aceita todos. A escola pública esforça-se por dar a todos uma oportunidade e por promover os menos afortunados. A escola privada gosta de campeões e escolhe os que o podem ser. A escola privada reproduz um sistema de castas que a escola pública tem como missão destruir. É por isso que, se existem sectores e momentos onde a escola privada pode tapar uns buracos da rede pública, nunca a poderá nem deverá substituir.
Há falhas na escola pública? Há e é nosso dever repará-las e fazer da escola pública um exemplo de cidadania e de qualidade. Mas não temos qualquer dever de garantir os rendimentos da escola privada.
(Negrito nosso)
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