quarta-feira, 27 de abril de 2022

Santana Castilho Por Abril


1. O 25 de Abril foi um rasgo de liberdade, que muitos ainda vivem. Mas nunca, como agora, a liberdade, o valor maior de Abril, se viu tão ameaçada. As verdades de Abril foram esboroando-se sob a falácia social das políticas dos últimos anos: primeiro a educação, depois a saúde e agora a paz. Tanta confusão entre verdade e mentira, tanto autoritarismo, tamanho o desprezo pelas liberdades individuais e pelos princípios constitucionais, tão grande o desfasamento entre quem governa e quem é governado, foram rasgando Abril e fizeram crescer a prole dos que desistiram da liberdade a troco de ilusórias seguranças, incapazes de ouvir os outros, definitivamente condicionados por novos dogmas.

Crescem as hordas que soltam ódio e ira. Proliferam as mentiras e as intrigas, que servem a paz por palavras e a guerra maldita pelos actos. A inquisição nova incinera quem questiona e exprime pensamento crítico. A comunicação social “embeleza” a notícia e transforma-a em sentença social. O discordar da retórica monopolista virou opróbrio e a crença histérica substituiu a dúvida em que assenta a ciência. É aqui que estamos, numa sociedade temente, definindo com mentiras novos critérios de verdade. Não me peçam para ser cego.

2. Num recente debate na RTP, Maria de Lurdes Rodrigues (MLR), a primeira e mais sinistra responsável política pelo estado do sistema de ensino, foi à cartucheira que lhe ocupa a alma e disparou esta rajada venenosa: “Não sei como chegámos aqui, assim. Não sei e não quero saber”. Porque nenhum dos intervenientes reagiu com frontalidade ao topete bolçado, atiro-lhe, agora, à cara sem vergonha, o que lhe deveria ter sido dito na altura:
- MLR foi a obreira de uma engenharia social que tornou a docência num inferno e dilacerou a vida dos professores. Liquidando a gestão democrática das escolas, concebendo uma marcha fúnebre a que chamou estatuto de carreira e um miserável modelo de avaliação de desempenho, MLR foi a coveira da classe.
- MLR promoveu a indisciplina nas escolas, com um estatuto do aluno kafkiano em matéria de ação disciplinar e provas de recuperação, artimanha para fabricar sucesso escolar.
- MLR foi a arquitecta do programa da Parque Escolar, que a própria apodou de “uma festa”. E que festa: contratos feitos por ajuste directo, sem concurso público, invariavelmente com os mesmos; uma auditoria da Inspeção Geral de Finanças (IGF) concluiu que o custo médio estimado de cada obra derrapou mais de 547%, de 2,82 para 15,45 milhões; outra auditoria, esta do Tribunal de Contas, detectou um valor superior a 500 milhões de despesas ilegalmente autorizadas.
- MLR desenhou o programa Novas Oportunidades, que o insuspeito ex- ministro das finanças do PS, Medina Carreira, classificaria como uma "trafulhice" e uma "aldrabice."
- Embora a decisão tenha sido posteriormente revogada pela Relação, MLR foi condenada a três anos e seis meses de prisão, com pena suspensa, por prevaricação de titular de cargo político.
Talvez MLR venha a entender um dia que, não estando na lei, há coisas que estão na moral da República.

3. Uma Educação de qualidade requer professores suficientes, qualificados e valorizados. Do seu falso excesso, que muitos invocaram (entre eles, Passos Coelho, em 2011, e António Costa, em 2016), passámos ao grave problema da sua falta, corolário das políticas dos governos dos últimos 15 anos, que ignoraram os alertas dos próprios órgãos oficiais de aconselhamento e monitorização (CNE e DGEEC).
Líricos teóricos, descolados da realidade, começaram a aventar medidas que têm dois denominadores comuns: ou pioram ainda mais as más condições de trabalho já existentes, ou diminuem os requisitos mínimos da profissionalidade docente. Porque sei bem do que falo, afirmo que a única intervenção inteligente para acudir no imediato ao problema passa por voltar a recrutar para a profissão os milhares de professores jovens qualificados que a abandonaram. Oferecendo-lhes agora as condições de trabalho que, por não existirem, os levaram a ir embora. E passa por meter na cabeça dos pequenos políticos que, para se ser professor, não chega a posse de conhecimentos científicos. São igualmente necessárias qualidades éticas e competências pedagógico-didáticas, somadas à arte de estabelecer relações humanas com os alunos.
In "Público" de 27.4.22

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