sexta-feira, 3 de junho de 2022

Opinião: “MAIA, a abelha distópica que está a matar a escola”


“Domingos Fernandes e a sua rede de «cientistas» e tecnocratas – sincronizados com o ex-secretário de Estado da Educação, entretanto promovido a ministro da Educação – fez um diagnóstico inexorável (e bizarro) da educação portuguesa: as pedagogias e processos de avaliação usados pelos nossos professores remontam ao século XIX e lesam a educação inclusiva.

Perante tal diagnose, o Ministério da Educação (ME) iniciou uma cruzada que visa revolucionar as metodologias de ensino, aprendizagem e avaliação das escolas nacionais. Refiro-me, neste texto, ao projeto MAIA, Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica, iniciado em 2019. Começou por ser um «projeto de âmbito nacional e de adesão voluntário» (Domingos Fernandes, Para uma Avaliação Pedagógica: Dinâmicas e Processos de Formação no Projeto MAIA, 2020, p. 10), para, entretanto, adquirir uma dimensão, tacitamente, obrigatória e totalitária.

Multiplicaram-se as formações, os colóquios, os encontros, as comunicações presenciais ou digitais sobre o projeto. Os Centros de Formação de Associação de Escolas (CFAE) concentraram as suas preocupações prioritárias nos temas da avaliação/classificação (assim como nas tecnologias da informação e da comunicação) e passaram a desprezar ainda mais as ações de formação de professores dedicadas às áreas científicas específicas (História, Português, Matemática, Ciências Naturais, etc.)

Nestes «seminários» de formação de professores, o evangelho dos novos gurus da educação é propagado ad nauseam. Recordemos o seu conteúdo: os professores afundaram-se há muitas décadas em práticas pedagógicas e avaliativas equívocas e perniciosas que têm desmotivado e lesado os alunos. Chegou, todavia, o momento de esses docentes reconheceram os seus atos falhados, saírem da caverna, enxergarem a luz da «verdade», edificarem a escola feliz e proporcionarem o sucesso educativo universal. Para isso, têm de optar exclusivamente por pedagogias ativas (discursar aos alunos sobre ciência tornou-se um pecado mortal), fundir conhecimentos com competências, avaliar de forma holística, distinguir avaliar de classificar, diferenciar práticas de avaliação formativa e sumativa (fazer testes escritos sumativos é outro pecado imperdoável), definir objetivos, critérios, rubricas e indicadores de aprendizagem a partir das aprendizagens essenciais.

Este é o novo paradigma educativo, o alfa e o ómega da escola, onde os professores devem concentrar toda a sua energia. Aqueles que preferirem canalizar a sua energia para a preparação pedagógica e científica estruturada das suas aulas não têm lugar na «escola moderna», onde ensinar ciência atualizada tornou-se um detalhe de menor importância.

Esta teologia e pregação inovadoras — concebidas de cima para baixo pelo ministro da Educação e a sua máquina de mentores, tecnocratas e burocratas — estão já a «revolucionar» a escola pública. Porém, tal evangelho desperta reflexões e problemas que quase todos preferem ignorar, olimpicamente.

Há muito tempo que a maioria dos professores incorporaram várias das práticas atrás descritas no seu trabalho, pois enveredaram por aulas dialogadas, optaram por experimentar metodologias ativas (e afetivas) e abandonaram os antigos hábitos de avaliar os alunos exclusivamente através de testes escritos. Contudo, é justo reconhecer que a avaliação formativa e sumativa sistemática e o recurso contínuo a pedagogias ativas acarreta dificuldades, a saber: É possível elaborar e operacionalizar critérios de avaliação holísticos onde os domínios comportamentais se fundem com os domínios do conhecimento? Como conciliar o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória com a lecionação dos conteúdos vertidos nos programas das diversas disciplinas? Devemos avaliar as escolas, os seus alunos e professores segundo os critérios utilizados nas empresas e aplicados aos seus «colaboradores»? Estão os projetos pedagógicos «inovadores» — inspirados no projeto MAIA, testados nas escolas públicas nacionais e tão aplaudidos pelo ME — a ser avaliados através de critérios isentos e objetivos? Os professores do primeiro ciclo do ensino básico, que ensinam em regime de monodocência, têm turmas com cerca de 20 alunos, trabalham com os seus alunos todos os dias e acompanham-nos muitas vezes do início ao fim do ciclo, lá vão conseguindo, porventura, aplicar mais regularmente as intrincadas metodologias pedagógicas e avaliativas agora exigidas. Mas os professores dos ciclos subsequentes, que lecionam em regime de pluridocência, têm, na maioria dos casos, mais de 5 turmas (muitas vezes, 8, 9 ou mais turmas), mais de 100 alunos com quem estão apenas uma, duas ou três aulas semanais de 50 minutos. Como podem estes professores ensinar e avaliar com objetividade e transparência cada um dos seus alunos recorrendo, de modo sistemático, aos modelos pedagógicos e avaliativos complexos hoje impostos, os quais pressupõem, por exemplo, um feedback (como agora se diz em bom português) instantâneo e contínuo? Como conseguem fazê-lo sem cair na armadilha de reduzirem a educação e avaliação a um processo bur(r)ocrático kafkiano? (Recordo-me de uma professora a quem os alunos chamavam «Caixa Registadora», porque passava as suas aulas a registar em grelhas digitais e em papel as alegadas evidências demonstradas pelos alunos). Como logram estes professores ensinar ciência, através de praticas estruturadas, e cumprir os programas das suas disciplinas recorrendo obsessivamente às pedagogias ativas? Programas longos que em várias disciplinas (onde, em certos casos, a carga horária tornou-se ainda mais reduzida) estão sujeitos a provas de aferição, provas finais de ciclo e exames nacionais que visam medir, com suposta assertividade e seriedade, o conhecimento científico e literário dos alunos.

Decerto que podemos já tirar uma ilação da alegada aplicação das «novas» pedagogias no domínio da avaliação: o sucesso educativo inflacionou e as percentagens de retenções diminuíram drasticamente. E tais cifras fazem a felicidade das direções das escolas, do ME, do seu ministro e inspetores, bem como de muitos alunos, pais e professores. Paradoxalmente, a maioria dos alunos chegam hoje ao ensino secundário e ao final do liceu pior preparados nos planos científico, literário e cívico. Trabalham menos, leem, interpretam e escrevem pior, revelam conhecimentos menos consistentes e – problema que não é de somenos importância – exibem comportamentos mais indisciplinados nas salas de aula. Isto é uma evidência que só escapa aos educadores românticos e aos tecnocratas da educação, que não pisam diariamente o chão das salas de aula, porquanto se escapuliram delas por falta de vocação e abnegação.

Está o ME disponível para debater estas questões? Não está. Neste momento, a ordem é arregimentar novos crentes, silenciar e marginalizar os descrentes e caminhar gloriosamente para o abismo. «Quem vier atrás que feche a porta!» E no futuro, a médio ou a longo prazo, quando se concluir que estas «políticas» pedagógicas não produziram melhores cidadãos, mas sim súbditos mais iletrados, amorfos e hedonistas, quem assumirá as responsabilidades? Obviamente, ninguém. Porque os portugueses já inscreveram no seu espírito a máxima de que em Portugal «a culpa [vive e] morre solteira»!“

Sem comentários:

Enviar um comentário