segunda-feira, 27 de novembro de 2023

As políticas governamentais tem visado limitar a ação e a desvalorizar as organizações sindicais

O grevismo, doença infantil do sindicalismo

No período final da ditadura, à medida que o nosso país se afundava numa crise cada vez mais grave, as movimentações laborais tiveram um enorme desenvolvimento, com sectores de trabalhadores ligados à estrutura clandestina do PCP, de trabalhadores católicos e de outros sectores de opinião democrática a estabelecerem plataformas de convergência e de articulação operacional que conduziram primeiro à conquista de diversas direções dos sindicatos únicos corporativos autorizados pelo regime então vigente e depois à constituição da Intersindical Nacional, em outubro de 1970.

A partir de 1974, com a restauração da democracia e da liberdade, apesar das vicissitudes históricas que se conhecem, a atividade sindical constitui-se, na grande maioria das situações, como um espaço de convivência entre diferentes sectores de opinião política, valorizando os “denominadores comuns” na elaboração de propostas reivindicativas em defesa dos interesses dos trabalhadores e contribuindo em aspetos decisivos para a consolidação do próprio regime democrático.

Durante décadas, foi desenvolvida uma cultura sindical de elevado sentido ético e de grande responsabilidade política.

A greve foi sempre definida como a “última arma dos trabalhadores”, colocando-se a tónica em esgotar primeiro a via da negociação e de outras formas de luta intermédia.

A generalidade das organizações sindicais esteve sempre sujeita a vários tipos de pressões, de chantagens e de campanhas para desacreditar as suas intervenções, submetendo muitos dirigentes sindicais a perseguições revoltantes.

As organizações sindicais têm demonstrado em múltiplos países que são entidades imprescindíveis na caracterização daquilo que deve ser um Estado democrático.

O neoliberalismo, na sua ofensiva predadora das políticas sociais e da própria democracia, definiu as organizações sindicais como o primeiro inimigo a abater e isso verificou-se logo na Grã-Bretanha com a destruição do então poderoso sindicato dos mineiros pelo governo de Thatcher.

As políticas governamentais na grande maioria dos países europeus tem visado limitar a ação das organizações sindicais, restringir a contratação coletiva a aspetos quase residuais e boicotar qualquer política de diálogo e de negociação.

Este comportamento ideológico tem conduzido à desvalorização do papel político, social e económico dos sindicatos e à consequente criação de condições para o aparecimento de estruturas populistas cujos objetivos da contestação pela contestação têm contribuído para um agravamento das condições de vida de um número crescente de trabalhadores, ao empurrarem os processos de luta para “becos sem saída” e ao difundirem conceitos de “política de terra queimada”.

No nosso país, essa situação de fragmentação sindical em alguns sectores profissionais tem determinado, como era inevitável, um enfraquecimento da capacidade reivindicativa dos trabalhadores.

O atual governo tem prosseguido essa ofensiva antissindical e tem contribuído para essa fragmentação em sectores profissionais tão sensíveis como enfermeiros e professores.

Se julga que enfraquecendo a representação sindical dos trabalhadores está a facilitar a aplicação das suas medidas governamentais, aquilo a que vimos assistindo é precisamente ao reforço das posições de organizações de extrema-direita com sectores da população cada vez mais descrentes em tudo o que são instituições do regime democrático como os partidos e os sindicatos.

Simultaneamente, uma grande parte dos dirigentes sindicais, sentindo-se impotentes para contrariar essa ofensiva e sem conseguirem definir uma plataforma programática global de desenvolvimento da intervenção sindical adequada aos novos tempos adversos refugiam-se em posições cada vez sectárias e de enquistamento político.

Temendo cair em situações armadilhadas e de perda de associados, recusam quaisquer acordos e adotam a perspetiva negocial do “tudo ou nada”.

Esta perspetiva, de acordo com a experiência acumulada, conduziu sempre ao fracasso e acaba por criar dúvidas sobre a utilidade dos sindicatos.

A greve passou a ser encarada como a primeira arma dos trabalhadores e as tarefas de organização e envolvimento dos trabalhadores nos locais de trabalho foram substituídas por convocatórias frequentes de manifestações.

A impaciência “pequeno burguesa de fachada socialista” acabou por ditar a adoção de medidas imediatistas e impulsivas desinseridas de uma abordagem transformadora da realidade político-laboral.

Importantes meios sindicais, desarmados ideologicamente e sem conseguirem construir marcos orientadores da sua intervenção ficam paralisados em posições de “nenhuns compromissos” e em conceções de vanguardismo que os desligam dos universos de trabalhadores.

Os perigos que assolam a Europa, e que já têm afloramentos no nosso país, com o crescimento da extrema-direita necessitam de sindicatos fortes como bastiões de defesa da democracia e de mobilização cívica dos trabalhadores.

A greve tem de voltar a ser a “última arma dos trabalhadores” e tem de deixar de ser banalizada, porque isso conduz ao seu desprestígio, à perda da sua capacidade mobilizadora e à desvalorização da sua utilidade como importante e muitas vezes decisiva forma de luta, como se tem visto, de forma preocupante, a nível dos médicos.

A greve não pode estar inserida em calendários de oportunidade política de agendas partidárias escondidas, porque isso conduz à corrosão do poder aglutinador e insubstituível das organizações sindicais.

Se a democracia não se constrói sem democratas, o sindicalismo não se revigora desligado do mundo laboral e à revelia das aspirações concretas dos trabalhadores em cada momento concreto.
Mário Jorge - Médico

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