Ana Soares
E eis que, de um dia para o outro, o discurso do Governo sobre a pandemia do Covid-19 mudou drasticamente. Se até agora a prevenção e cautela eram quem mais ordenava, agora parece que as razões económicas se sobrepuseram às de saúde. Não quero com isto dizer que não se deva atender à necessidade – premente – de retomar a actividade económica assim que possível. Pelo contrário. Para que o possamos fazer sem que uma segunda vaga implique uma hecatombe temos que seguir um plano faseado e muito bem estruturado.
Na última crónica, escrevi como a decisão do Governo pretender avançar com aulas presenciais apenas no 11.º e 12.º anos me parecia a decisão acertada e que esperava que tivessem a coragem e determinação de a manter, nomeadamente no que às creches e jardins de infância dizia respeito. Debalde! Entretanto tem sido avançado que as creches devem abrir em Maio e os Jardins de Infância em Junho. Não posso estar mais em desacordo com esta decisão, pelo que regresso ao tema.
Para ficar clara a minha declaração de interesses, tenho duas Filhas, uma de um e outra de quatro anos, ambas a frequentar uma IPSS. Considero muito importante a frequência de estabelecimentos nesta faixa etária, sendo muito relevantes as competências emocionais, sociais - entre outras - que adquirem, muito valorizando o trabalho de educadores de infância, auxiliares e demais comunidade escolar. Também para mim seria mais fácil retomar a vida normal e que elas voltassem para a escola, mas se todos dizemos que o mais importante é ter saúde, agora é tempo de o provarmos!
Muito se tem falado que alguns países iniciaram o regresso à vida normal (dentro do possível) com a abertura das creches. É verdade, mas não se podem comparar realidades estruturalmente diferentes. Isto porque, desde logo, em muitos países o rácio entre profissionais e crianças é menos de metade do que acontece em Portugal, ou seja, enquanto que em Portugal é frequente um auxiliar e um educador acompanharem um grupo de 20 crianças ao local da refeição ou ao wc, noutros países para um grupo de 20 crianças seria necessário estarem cinco adultos, o que tem claras implicância no que diz respeito a rotinas diárias. A título de exemplo um maior número de adultos permite um acompanhamento mais próximo em vez dos “combóis” ou mãos-dadas utilizadas (e muito bem em condições normais e face ao que cá está previsto) em muitas creches e jardins de infância. E esta diferença é apenas um exemplo, sendo que poderíamos referir muitos outros como a obrigatoriedade que se verifica em alguns países de existir um local de isolamento por sala para crianças doentes e não uma por estabelecimento como é usual por cá ou a existência, noutros países, de câmaras de acolhimento (até por questões climatéricas) e que facilmente podem ser transformadas em áreas “sujas” e áreas “limpas” para evitar a propagação do vírus.
Sejamos coerentes. Não faz sentido não equacionar (e bem!) a abertura das escolas do primeiro ao terceiro ciclos e pretender que, logo no primeiro mês após o Estado de Emergência de mês e meio, sejam as crianças mais novas a voltar às creches, seguidas das do jardim de infância. E não apenas pela insegurança que incute nos Pais e familiares, mas por motivos objectivos. Por um lado, porque abrindo as creches e voltando uma parte da população ao trabalho, muitas famílias terão de recorrer à ajuda dos Avós como acontecia quotidianamente até há dois meses. Sendo a generalidade das crianças assintomáticas, isto representa um risco enorme para os mais velhos, população de risco mais elevado nesta pandemia. Por outro lado, muitas instituições particulares de solidariedade social têm num mesmo edifício, ainda que em áreas separadas, creches e jardins de infância e lares/centros de dia de terceira idade, o que normalmente se apresenta como uma mais-valia pelas actividades inter-geracionais feitas, mas que só a proximidade pode, neste momento, ter efeitos prejudiciais. Além do facto de ainda não serem conhecidas todas as consequências do Covid-19 a médio/longo prazo, estando neste momento a ser estudados os seus efeitos a nível pulmonar, cerebral, … Queremos mesmo lançar as crianças na primeira fase do afrouxamento de medidas, sem saber como irá correr, sem serem conhecidas as consequências deste acto para a saúde? Temos de o fazer certamente porque a vida não para, mas esperemos primeiro o tempo de três ou quatro incubações (dois meses) para perceber qual será o comportamento do vírus e o seu contágio em Portugal. E não nos esqueçamos dos profissionais que trabalham nestes estabelecimentos e das suas famílias. Sendo um aglomerado em que as medidas de segurança não podem ser rigorosamente seguidas, não merecerão também ser poupados à uma maior probabilidade de infecção dos que os outros serviços que abrirão inicialmente?
As crianças dos 0 aos 6 anos têm características próprias, normais do seu estado de desenvolvimento e que os profissionais, por mais que se esforcem, não podem contornar, porque são próprias da faixa etária. É impossível que uma criança de creche consiga manter distanciamento dos amigos ou utilize máscara ou que não meta à boca um brinquedo da sala. Ou que uma criança de 3 ou 4 anos não brinque de mãos dadas com os colegas ou partilhe um lápis de cor.
Falam-nos da imunidade de grupo, o que até poderia ser um forte argumento para a abertura faseada de escolas (mas, ainda assim, a faixa etária escolhida seria sempre a errada, do meu ponto de vista). Mas nem isso se pode afiançar, uma vez que, sendo um vírus novo, ninguém consegue garantir, na comunidade científica, como funciona a imunidade de grupo neste caso, nomeadamente a existência e duração da mesma e se é suficiente para as mutações do vírus não causarem novas infecções. Veja-se que esta foi a estratégia inicial do Reino Unido e que depois foi alterada, uma vez que foi calculada que a percentagem da população a ficar infectada até à imunidade seria enorme, com uma taxa de mortalidade brutal e número de necessidade de internamento hospital incomportável. Continuemos a aproveitar a vantagem de termos sido dos últimos países europeus a ser atingidos por esta pandemia e não cometamos erros evitáveis, como tão bem temos feito.
António Costa disse hoje que os esforços actuais implicam um imposto amanhã e, sejamos claros, Portugal entrará numa fase muito complicada após tudo isto passar, como a generalidade dos países. Se este período exige um esforço brutal de todos (neste caso das escolas, dos profissionais, pais e instituições), significa um gasto brutal para o Estado pelos apoios entretanto criados e que teriam que se manter em vigor enquanto os estabelecimentos estivessem encerrados. Mas não percamos - por uma diferença de poucas semanas - todo o esforço (e investimento público e privado) que temos vindo a fazer. Sei que em política o abandono de um programa já publicitado não é frequente, mas espero que haja uma nova ponderação da abertura das creches e infantários já em Maio e Junho. E, se, entretanto, tudo correr bem com a restante abertura faseada da sociedade, então que se planeie antecipadamente a abertura de ATL e escolas para o verão, altura em que muitos portugueses não terão as férias habituais face às contingências entretanto vividas. Mas de forma controlada, pensada e sem comprometer a segurança e a saúde.
Temos ganho muitas batalhas com o esforço e envolvimento de todos! Aplaudo todos quantos têm estado na linha da frente do combate ao vírus, mas também por eles saibamos manter o esforço necessário para que os bons resultados se mantenham e não passemos aos cenários dantescos que se viveram (e vivem) noutros países. Por todos nós, pelos nossos Pais e pelos nossos Filhos.
(Negrito nosso)
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