quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Contra os contextos de aprisionamento na vida das crianças e o conceito de Escola a Tempo do Inteiro

A Escola a Tempo Inteiro – (des)escolarizar as Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC)


As crianças passam a maior parte do tempo na escola com currículos intensos e extensos e com escolas paralelas (AEC, CAF, etc.) e ainda atividades organizadas fora da escola (desportivas, religiosas e artísticas) que se prolongam muitas vezes pela noite fora. As escolas guardam as crianças nos horários laborais das famílias e com atividades demasiadamente estruturadas. 

No 1º ciclo de escolaridade as crianças passam em média 40 a 50 horas na escola, considerando a soma do horário curricular, as Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC) e a Componente de Apoio à Família (CAF). As crianças dos seis aos dez anos em Portugal têm mais 1200 horas passadas na escola do que a média dos países da Comunidade Europeia. Trata-se, neste caso, de uma obesidade curricular de atividades completamente estruturadas e na maior parte dos casos em situações muito sedentárias. Quando o corpo não se mexe, a cabeça não pensa e não se desenvolvem a capacidade de adaptação e a criatividade que são essenciais ao bom sucesso educativo. Não são tempos livres. São tempos organizados e estruturados. São contextos de aprisionamento na vida de crianças. O Ministério da Educação (ME) introduziu o “Programa Escola a Tempo Inteiro” em 2005/2006, procurando dar resposta à Lei de Bases do Sistema Educativo, em que se prevê 

(…) ações orientadas para a formação integral e a realização pessoal dos educandos no sentido da utilização criativa e formativa dos seus tempos livres, visando nomeadamente o enriquecimento cultural, cívico, a educação física e desportiva, a educação artística e a inserção dos alunos na comunidade, valorizando a participação e o envolvimento das crianças na sua organização, desenvolvimento e avaliação. 

O que na realidade aconteceu nos últimos anos nas escolas do 1º ciclo de escolaridade, por todo o território educativo, foi desvirtuar a lei e fazer emergir uma organização destes tempos livres numa perspetiva de “escola paralela” e sem participação dos alunos (tempos formais). Verifica-se que os modelos de organização das AEC (iniciativa municipal, empresas contratadas, associação de pais, etc.) e de funcionamento (atividades estruturadas de natureza desportiva e artística, substituição das atividades curriculares de Expressões, etc.) são os mais diversos, sendo contratadas pessoas com e sem formação académica e pagas de forma precária e por vezes escandalosa. Na maior parte dos casos, não são levados em conta os dispositivos jurídicos e as recomendações emanadas pelo ME. Recordamos a publicação da portaria 644-A/2015, quando define o objetivo fundamental do funcionamento destas atividades através de decreto de lei, em 2012: 

O Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de julho, na sua redação atual, estabelece que, no âmbito da sua autonomia, os agrupamentos de escolas, no 1º ciclo do ensino básico, desenvolvem atividades de enriquecimento curricular, de caráter facultativo para os alunos, com um cariz formativo, cultural e lúdico, que complementam as componentes do currículo. Deste modo, cada estabelecimento de ensino do 1º ciclo garante a oferta de uma diversidade de atividades que considera relevantes para a formação integral dos seus alunos e articula com as famílias uma ocupação adequada dos tempos não letivos.

Entretanto, em 28 de junho 2017, foi enviada uma recomendação do Diretor Geral da Educação do ME a todos os protagonistas da comunidade educativa e a propósito da organização e funcionamento das AEC, fazendo apelo à alteração do conceito de escolarização destas atividades: 

O estudo de avaliação externa dos impactos do Programa das Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC), realizado em 2013 a pedido do ME, na linha de investigação académica independente e dos relatórios anuais produzidos pela Comissão de Acompanhamento, alertam para uma realidade marcada pela excessiva escolarização das atividades de enriquecimento curricular, que se traduz em ofertas de caráter segmentado, disciplinar e formal, pouco articuladas com o período curricular e com o projeto educativo dos agrupamentos de escolas. Alertam ainda para o caráter substitutivo que algumas AEC têm tido relativamente à composição de expressões artísticas e físico-motoras, parte integrante da matriz curricular do primeiro ciclo do ensino básico

É nossa convicção que estas atividades deveriam passar a ter um caráter essencialmente LÚDICO, participativo, cultural, interdisciplinar, privilegiando a avaliação formativa. Não um excesso de escolarização, extensão do currículo ou substituição do mesmo! Esta urgência de criar modelos de funcionamento das AEC amigos do brincar livre implicaria uma série de medidas para um funcionamento adequado: 

- Levantamento das condições de espaços interiores e exteriores das escolas e do património ambiental, artístico e cultural da comunidade; 
- Ouvir as crianças nas suas motivações e permitir a participação na identificação e implementação de diversas atividades; 
- Elaborar contextos de atividades (ateliês temáticos) livres e desafiantes de natureza lúdica, motora, artística e cultural; 
- Conciliar um plano articulado de colaboração entre crianças, técnicos de AEC, professores em monodocência e famílias; 
- Estender a procura de experiências em contato com a comunidade local; 
- Proceder a um plano de organização e avaliação participada (portefólios) das atividades realizadas. 

Nunca foi tão urgente a implementação e consolidação da Educação Física no 1º ciclo, aumentando as horas curriculares e com um funcionamento em coadjuvação com o professor em monodocência e no respeito pelas referências emanadas pelas aprendizagens essenciais e pelo programa disciplinar definido pela legislação (não impeditivo de adaptação a cada projeto educativo local). Por outro lado, é essencial haver aprendizagens não estruturadas de tempo livre para brincar e ser ativo (tempo para a criança) após o horário escolar formal. Este equilíbrio é uma prioridade, considerando o desenvolvimento de um estilo de vida ativo e promotor da saúde física, mental, emocional e social. 

O combate ao sedentarismo infantil e à iliteracia motora deve ser realizado em diversos contextos (família, escola e comunidade), sem esquecer os direitos da criança previstos na Carta Internacional dos Direitos da Criança, principalmente o art.º 31º (direito ao brincar e tempos livres) e o art.12º (direito à participação e possibilidade de expressão dos seus interesses). 

Neste sentido, apela-se a uma revisão do conceito, da organização e da implementação do modelo de funcionamento das AEC, no sentido de fomentar o Brincar Livre e Ser Ativo, como uma fonte enorme de aprendizagem, e a valorização de competências emocionais, sociais e culturais, com a participação das crianças, permitindo a sua livre capacidade de expressão, comunicação e motivação em atividades promotoras do bem-estar e criadoras de um estilo de vida saudável ao longo da vida (dar a voz às crianças!!!).

Carlos Neto - Brincar e ser ativo na Escola em tempos de pandemia
(Negrito nosso)

Sem comentários:

Enviar um comentário