terça-feira, 18 de dezembro de 2018

A burocracia em que vivemos atolados

O ENTULHO DAS ESCOLAS

Carmo Machado - Visão 

Sim, os resíduos resultantes da construção e demolição de mais um ano letivo serão enfiados - durante horas - em envelopes que mais ninguém abrirá e cujo destino será um qualquer arquivo morto com o qual os muitos ratos que habitam algumas escolas se irão certamente deliciar

Chegou o fim do primeiro período e, com ele, começam a sair dos buracos do grelhador mais umas quantas grelhas que lá tinham ficado esquecidas. Por incrível que possa parecer, a burocracia em que vivemos atolados ainda me consegue surpreender. Como se não bastassem já as pilhas de testes e trabalhos por corrigir que se acumulam nesta altura do ano em cima das nossas secretárias, sem esquecer as grelhas de avaliação que nos organizam as classificações a atribuir de acordo com percentagens específicas para cada item que, por sua vez, se subdivide em pontos diferentes a atribuir ao conteúdo, à estrutura e à correção linguística (se não for professor de Português, não tente sequer compreender isto), há ainda as diferentes competências da disciplina ou domínios ou lá o que lhe quiserem chamar (uma vez que a terminologia tende a variar como as estações do ano), surgem ainda as mensagens sucessivas no meu correio eletrónico com novas grelhas e relatórios e fichas por preencher. Sim, caro leitor, o Decreto-Lei Nº 54/2018 vem acompanhado de 26 anexos. Leu bem. Vinte e seis...

Ora, aos caríssimos senhores e senhoras, elites ministeriais, concetualizadores de decretos, e aos outros, os que têm a paciência para transformar os decretos em grelhas que facilitem a aplicação do arrazoado ministerial, lanço daqui o meu apelo, uma vez que todas estas grelhas e documentos a preencher, no meu caso particular, já começou a fazer mossa.

Eu sei que sou diretora de turma e que, por mais umas míseras três horas semanais tenho de organizar a vida de trinta alunos, receber os seus pais e encarregados de educação, organizar o dossier, arquivar as justificações de faltas, preparar as reuniões de avaliação e, mais importante, estar atenta aos múltiplos sinais de (d)equilíbrio que os discentes possam apresentar... mas não vos chegaria a ata das reuniões que realizamos para vos (e nos) elucidar sobre o que verdadeiramente interessa?

Estarão, vossas excelências, na posse da absoluta certeza de que é mesmo necessário também o anexo à ata? O relatório de turma e o anexo ao mesmo? O relatório das visitas de estudo? O plano de turma? E a ficha de alunos indicados para apoio? E a ficha de referenciação com a sua ficha anexa? E a ficha individual de transição? A ficha de identificação de necessidade e medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão? E o relatório técnico-pedagógico?

Não tenho a certeza. Sei, porém, que se acrescentarmos a estes documentos os outros que são obrigatórios das nossas disciplinas de lecionação, estamos perante um menu recheado de papel que no final de cada ano transformará em entulho. Sim, os resíduos resultantes da construção e demolição de mais um ano letivo serão enfiados - durante horas - em envelopes que mais ninguém abrirá e cujo destino será um qualquer arquivo morto com o qual os muitos ratos que habitam algumas escolas se irão certamente deliciar.

Por isso, peço-vos: 
(i) controlem, por favor, a propagação desta doença – grelhice crónica, como alguém já lhe chamou – e deixem ficar apenas as atas que ainda elaboro com tanto afinco, possuída pela esperança dos otimistas de que alguém as lerá; 
(ii) partam das reflexões, desabafos e preocupações que os professores nelas registam para os ajudarem a encontrar soluções para os muitos problemas que lá surgem; 
iii) usem-nas para, nas intermináveis horas de reuniões de conselho pedagógico (gastas a aprovar grelhas e fichas e afins que em nada acrescentam à qualidade do ensino) decidirem - com medidas efetivas - sobre os graves problemas que afetam diariamente a nossa prática letiva: a indisciplina, a desmotivação e a preocupante falta de inovação.

Porque é na aula que tudo acontece, não no papel, reconheço cada vez mais um cariz patético neste excesso de burocratização em que vivemos dentro da escola pública. Deixem-nos ser professores, pá!

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