Paulo Guinote
O Presidente da República optou por fundamentar o veto numa questão formal e fácil de contornar pelo Governo.
Quase à noite, no dia a seguir ao Natal, soube-se que o Presidente da República vetou o decreto-lei com que o Governo pretendia impor de forma unilateral a recuperação de uma pequena parte do tempo de serviço congelado aos professores desde Agosto de 2005. Não esperava tal veto depois do que foi sendo escrito e dito na comunicação social acerca do assunto, mesmo se o achava a decisão mais justa a tomar. Em especial se fosse fundamentada de um modo robusto, existindo dois fortes fundamentos para o fazer: a situação de desigualdade no tratamento dado aos professores do continente em relação aos das regiões autónomas e o facto de a solução apresentada (contagem do tempo a recuperar apenas a partir de uma próxima progressão) permitir situações de ultrapassagem na carreira.
No entanto, o Presidente da República optou por fundamentar o veto numa questão formal e fácil de contornar pelo Governo. Ao remeter para o artigo 17.º da Lei do Orçamento para 2019, que prevê que a questão seja objecto de negociação sindical, limita-se a forçar o Governo a, após 1 de Janeiro, voltar a uma negociação que, como assistimos no início de Dezembro por imposição do Parlamento, começa e acaba sem qualquer mudança nas condições da proposta. Quem festejou o veto, festejou apenas o adiamento de algo que, nos termos em presença, repete a coreografia negocial de 2018.
O Governo só não festejou porque tinha de fazer o papel de incomodado, mesmo não o estando. A nota com que reagiu ao veto é de uma enorme hipocrisia quando afirma que “o Governo lamenta o facto de os educadores e os professores dos ensinos básico e secundário não poderem ver contabilizados já a partir de 1 de janeiro de 2019 os 2 anos, 9 meses e 18 dias”. A verdade é que, de acordo com os termos do decreto vetado, só os professores que com progressão assegurada para o 5.º escalão (que é uma das transições sujeita a quotas) no dia 1 de Janeiro poderiam beneficiar de alguma coisa, pois o que se determina é que tal contabilização só faça efeito após uma futura progressão e todos os escalões da carreira, à excepção do 5.º, têm quatro anos. Por exemplo, quem tenha progredido a qualquer outro escalão em meados de 2018 só veria efeitos de tal “recuperação” após progredir de novo (meados de 2022) e terá então de esperar que se complete o resto do tempo em falta para que a benesse governamental se possa concretizar (finais de 2023). Desta forma, os professores no 9.º escalão nunca poderão beneficiar da medida. E muitos outros, no 8.º, que cheguem à idade de se aposentar, também não. E os que não tiverem quotas para passarem ao 3.º, 5.º ou 7.º. A nota do Governo assenta numa espécie de realidade alternativa, típica do discurso político que vivemos. A 1 de Janeiro ninguém ganharia mais um cêntimo com a promulgação do decreto-lei.
A erosão da carreira docente e a proletarização da classe não é uma imposição orçamental como se quer fazer acreditar. É um projecto político claro que precede a crise das contas públicas, destinado a domesticar uma classe profissional, por se considerar excessivo o poder negocial dos seus sindicatos. A recuperação integral, faseada ou não, do tempo de serviço congelado desde 2005 não é uma caixa de Pandora que depois de aberta libertaria demónios mil e levaria ao colapso das contas públicas. O problema é que essa recuperação integral seria uma declaração de derrota em relação a um esforço iniciado no final de Agosto de 2005. Não é por acaso que os comunicadores políticos do Governo falam quase sempre em apenas sete anos de congelamento (2011-2017) como se tivesse sido uma espécie de consequência associada ao colapso financeiro, à vinda da troika para Portugal e aos governos do PSD/CDS. Nada disso, os congelamentos nas progressões começaram antes como parte de um plano executado quando Maria de Lurdes Rodrigues encomendou a João Freire um relatório (Estudo sobre a Reorganização da Carreira Docente, Dezembro de 2005) destinado a encontrar soluções que tornassem a carreira docente mais lenta nas progressões e com pontos de estrangulamento que impedissem parte significativa dos professores de alcançarem o seu topo.
Quase tudo o que se tem escrito acerca deste tema, contra as justas pretensões dos professores verem reconhecido o seu tempo de trabalho que prestaram, esconde o essencial: estão em causa opções políticas antigas, partilhadas pelo núcleo duro do actual Governo que as validou nos tempos de José Sócrates. Mas, como o fim das retenções, não há coragem para o assumir com clareza.
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