Paulo Guinote
Depois de sucessivos amesquinhamentos, parece ter-se descoberto que as escolas são essenciais para que tudo o resto funcione, a começar pelos serviços ditos “essenciais”. E então fala-se em “respeito”. É pena que tudo soe a oportunismo.
Há cerca de duas semanas, a terminar Outubro, perante o recrudescimento dos números da pandemia, o primeiro-ministro fez uma declaração que transcrevo de forma extensa, para que a análise não possa parecer truncada. Afirmou António Costa que “seria, no mínimo, uma grande falta de respeito para o grande trabalho que foi feito na preparação deste ano letivo que o conjunto da sociedade não se empenhasse para garantir que o ano letivo decorre sem qualquer incidente”.
E eu fiquei sem perceber o que ele quis dizer com a referida “falta de respeito”. Numa leitura simples, seria em relação ao “esforço muito grande que as comunidades educativas fizeram” na preparação do ano lectivo, mas isso faz escasso sentido porque, na referida preparação, esteve sempre presente a mais do que possível e provável passagem a um modelo não-presencial misto de ensino, por muitas limitações que essas opções apresentem, desmentindo todos os que andaram alguns meses a clamar que esse seria o caminho necessário para o “futuro” e para a “entrada no século XXI”.
Mas, perante os perigos envolvidos, em Março foi mais prudente fechar as escolas e, como se constatou, essa foi uma medida acertada para a contenção da propagação do vírus. Estudos recentes, com amostras muito alargadas, revelam como as medidas relacionadas com a abertura/fecho dos espaços escolares estão entre as que mais podem reduzir/aumentar a difusão do SARS-CoV-2 (cf. The Lancet, “The temporal association of introducing and lifting non-pharmaceutical interventions with the time-varying reproduction number (R) of SARS-CoV-2: a modelling study across 131 countries”, publicado online em 22 de Outubro de 2020). Porque são espaços onde se multiplicam contactos que têm origem em múltiplos ambientes familiares, aos quais voltam todos os dias. Não porque o vírus brote subitamente nas salas de aula.
Quando, em meados de Setembro, o mesmo António Costa afirmou em Benavente que "a escola em si não transmite o vírus a ninguém" estava apenas a enunciar uma lapalissada e a contornar o mais importante. E, na prática, a faltar ao respeito à opinião pública, às “comunidades educativas” que agora garante querer respeitar e a qualquer inteligência mínima, não conduzida pelos interesses de circunstâncias políticas de curto prazo.
Na verdade, as “comunidades educativas” foram desrespeitadas quando tiveram de preparar o ano lectivo por si mesmas (claro, é a questão da “autonomia”), sem que fossem adaptados aspectos essenciais nas condições de trabalho de alunos e professores, a começar pela não aplicação das regras mais comuns de distanciamento social e segurança sanitária. As coisas até têm corrido “bem”? Sim, é possível, mas a verdade é que não sabemos de forma rigorosa como, porque um ministério tão seduzido por plataformas para registar todos os detalhes do quotidiano escolar não se preocupou em criar rapidamente uma para transmitir, de forma transparente, as informações disponíveis sobre a situação epidemiológica em cada uma dessas “comunidades educativas”.
Ao mesmo tempo, apesar de múltiplos anúncios de centenas de milhões de euros para a “transição digital” das escolas, mais de dois meses depois do arranque do ano escolar nada se viu em matéria de novos equipamentos. A 11 de Setembro, o Conselho de Ministros garantia 100.000 computadores para as escolas (o que é insuficiente). Mas, a cada quinzena ou mês garante-se que é na quinzena ou mês seguinte que tudo acontecerá. O que avança? Um programa quase invisível de “capacitação digital de docentes” para um grupo muito restrito de “formadores”.
Mas mais grave do que isso, e resultando de uma prolongada política de clara “falta de respeito” pelos docentes, vive-se um período de escassez de professores para necessidades que se dizem “temporárias”, mas existem todos os anos. As condições de trabalho, a começar pela forma de contar o tempo de serviço ao minuto, à hora e ao dia para quem é contratado, faz com que não seja racional alguém deslocar-se centenas de quilómetros, alugar alojamento e, no fim, receber uma remuneração real abaixo do salário mínimo. E muitos horários vão ficando por preencher. Ou substituições por fazer. Porque a classe docente é acusada de “envelhecimento” para umas coisas, mas isso já é esquecido quando se trata de considerar a sua situação de risco.
Afinal, depois de sucessivos amesquinhamentos, parece ter-se descoberto que as escolas são essenciais para que tudo o resto funcione, a começar pelos serviços ditos “essenciais”. E então fala-se em “respeito”. É pena que tudo soe a oportunismo.
(Negrito nosso)
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