terça-feira, 29 de junho de 2021

Do regresso dos bons e dos maus professores - Paulo Prudêncio

 Se ser professor é tão complexo, exigente e difícil como a sua avaliação, o retrato actual é muito pior do que o do início do milénio.
 

Ciclicamente, o mundo mediático desperta para a magia dos bons professores. Há cerca de vinte anos que não saímos dum imaginário maniqueísta exclusivo para professores. Não há nada de parecido com os melhores noutra profissão que não seja do espectáculo ou da precariedade. Nenhuma fundação se atreve a fazê-lo para os melhores psiquiatras, neurocirurgiões ou juízes, nem sequer para o desempenho de deputados, comentadores ou professores do ensino superior.

Desta vez, foi o estudo, "O impacto do Professor nas aprendizagens do aluno", da Fundação Belmiro de Azevedo. A mediatização suscitou argumentos sobre os melhores e os piores professores que vão para além do estudo. Embora este recorra "à literatura mais recente" sobre os Valores Acrescentados do Professor (VAP), há quem prefira priorizar os Valores Acrescentados das Sociedades - gestão do território e distribuição da riqueza - e os Valores Acrescentados das Escolas - dimensão das escolas e das turmas, currículos consistentemente completos e ambientes civilizados -. Há muito que prevalece uma tensão discursiva entre o profissional e a sua circunstância, como se fosse possível tomar partido. Se numa regressão linear múltipla se escolher o impacto nos resultados dos alunos como variável dependente, decerto que se hierarquizará assim as variáveis independentes com valores acrescentados: sociedades, escolas e professores.

É óbvio que não há sítio no planeta em que uns dados profissionais tenham efectivamente o mesmo rendimento. Só em trágicas mistificações. O que se tem provado, é a "impossibilidade" de hierarquizar o desempenho dos professores. Não é porque não se queira diferenciar. É porque não se consegue. Aliás, as conclusões deste estudo (2021:157) referem a importância das características dos alunos no seu desempenho escolar (sexo, formação dos pais, nível de rendimento, nacionalidade, entre outras) e salientam que, e apesar do VAP permitir concluir o impacto relevante dos professores, as suas características (posição na carreira, formação e tipo de contrato) não estão correlacionadas de forma sistemática com o valor acrescentado.

Resumamos com dois países dos extremos do PISA: se substituirmos os professores filipinos por professores finlandeses, o valor acrescentado será muito inferior ao da integração plena das famílias filipinas numa sociedade como a finlandesa. Já agora, na Finlândia, que também ainda tem humanos a leccionar e escolas bem dimensionadas, haverá professores de todos os géneros e não há avaliação do desempenho. O que existe, e há muitas gerações, é uma formação inicial prestigiada, uma carreira digna e um testemunho de confiança inabalável; e creio que a ideia dos melhores não faz caminho.

Mas este assunto é sério. É fundamental perceber se existe um desejo ideológico que selecciona, ou usa, perguntas para investigação associadas à iintenção de privatização da educação. Como se sabe, em ciência estuda-se muito o objecto antes de se colocar a questão a investigar. Quando isso não acontece e não impera o conhecimento da realidade, os resultados podem ter usos muito negativos como, de resto, acontece em Portugal.

Aliás, aconselha-se o conhecimento de dois fenómenos deste milénio nos EUA onde se faz há muito estes estudos de valor acrescentado. E não se pense que não nos influenciaram. Diane Ravitch, ex-secretária de Estado nos EUA e aplicadora da privatização das escolas e da avaliação de professores pelos resultados dos alunos, escreveu, e como conclusão arrependida, "a farsa do movimento de desestatização e o perigo para as escolas públicas da América". Também o modelo de avaliação, patrocinado pela Fundação Gates e pelo "Obama Race to the Top", resultou na grave falta de professores ao avaliá-los, remunerando eficazes e despedindo ineficazes, através de testes padronizados aos alunos. As conclusões dizem ainda que se prejudicou os alunos, que se empurrou professores entusiasmados para fora da profissão e que se desencorajou a candidatura dos jovens com melhores resultados escolares.

Ora bem. Em Portugal, nos últimos 20 anos, aplicaram-se ideias desta família na avaliação de professores e na gestão das escolas e com resultados semelhantes. Se ser professor é tão complexo, exigente e difícil como a sua avaliação, o retrato actual é muito pior do que o do início do milénio. Para além da "novidade" da falta estrutural de professores, os que existem estão, em regra, descrentes, agastados, em revolta contida ou radicalizados. São incomparáveis os números do burnout. Aliás, a OCDE diz que já "só os alunos dão ânimo aos professores", apesar do ruído relacional quando o smartphone é uma adição central na vida dos alunos. E a sociedade não ajuda. Os conflitos educativos são mediatizados com a sabida desconfiança nos professores ou com a necessidade de mais uma "reforma meritocrática"; e são muitos anos desta ventania. Por outro lado, a escola perdeu a gestão de proximidade e a massa crítica. O aumento da escala para mega-agrupamentos eliminou a mobilização reflexiva para uma autonomia com pressupostos modernos e desburocratizados de flexibilidade e inclusão. A origem das nuvens carregadas não é a didáctica do ensino, é a organização doentia que está a montante da sala de aula e que o mau uso destes estudos acentua.

Por outro lado, as nossas empresas ainda agem de modo isolado no universo escolar. Diz-se que temos de evoluir, na Europa, para grupos empresariais a dirigir as escolas; como nos EUA. Quarenta e dois empresários portugueses formalizaram, recentemente e em nome da inovação mas com argumentos do século XX, uma associação para a "mudança profunda no ensino". Desejam mais automatização para um mercado mais automatizado. Ficaremos ainda mais pobres. Seremos os meros utilizadores. Aliás, as perguntas do estudo que aqui nos trouxe ficam aquém dum ensino com currículo completo que inclua convictamente as humanidades, as artes e os desportos. E porquê? Porque é o que temos. E isso paga-se. A propósito, e como também diz o estudo, as características dos professores não influenciam o valor acrescentado. Talvez por isso, se teime em concursos de professores entregues aos 308 municípios onde a regra não será a transparência nem as habilitações. Guardadores no modelo-uber serão suficientes numa escola onde imperará a automatização com conteúdos digitais massificados que mascarará os erros que originaram a falta de professores.

Acima de tudo, o ambiente escolar já é servo das tecnologias. E são redutoras as ideias de que se deve aprender apenas porque se quer ser melhor do que os outros ou porque há uma recompensa material. Em contraposição, seria mais abrangente aprender porque se quer saber mais e porque se tem curiosidade. Sabemos que não é fácil conjugar estas asserções. A natureza humana tem requerido diversas combinações. Mas a experiência portuguesa parece teimar em acentuar a via métrica e pavloviana e constituir-se no dever de formar capital humano em detrimento de educar e humanizar.

Os historiadores não compreenderão como fomos capazes de extinguir a escola democrática pouco tempo depois da sua generalização. Mas nem sabemos se existirá essa incompreensão. Talvez se caminhe para uma sociedade em que também se extinga o direito à educação como um princípio inalienável das democracias.

Sem comentários:

Enviar um comentário