Henrique Raposo
Parem com o experimentalismo que se esconde atrás do medo. Devolvam a escola e a infância aos nossos filhos.
Estamos num jardim público com outro casal amigo. Estou entre as minhas filhas e um grupo de irmãos que joga à bola. Um chuto forte e despropositado atira a bola na direção da cabeça das minhas filhas. Ato contínuo e reflexo, o meu instinto é colocar as mãos à bola. É o que faço. Mas, naquela porção de tempo inferior a um segundo que vai do chuto até à minha estirada de guarda-redes, o tal grupo de irmãos grita enojado, Não, não toque na bola!
São imensas as histórias que mostram como a paranóia securitária (não o vírus) está a mutilar emocionalmente as crianças. Entre magoar outra criança e ter a sua bola tocada por um estranho, este grupo de irmãos prefere a primeira. Ou seja, o pânico já é uma segunda natureza, até inverteu o instinto moral: eles deviam sentir-se culpados por estarem a pôr em risco crianças mais pequenas – e deviam pedir desculpa. Mas reagiram com desagrado, como se eu fosse o culpado.
Perante este quadro mental, não percebo como é que ainda há pessoas a defender a manutenção da escola à distância a partir de setembro. É que estamos mesmo a mutilar emocional, moral e socialmente uma geração de crianças. Este pânico (injustificado) está a criar uma geração anti-social com nojo de qualquer interação e toque humano. Se passarem mais de um ano nesta repulsa, como é que esta geração vai voltar a fazer desporto? Como é que voltam a praticar judo, futebol, natação? Será uma geração que se vai remeter ainda mais ao isolamento individual dos vídeos jogos e dos telemóveis? Se não cancelarmos a paranóia, sim. As relações amorosas e até sexuais serão ainda mais virtuais e internéticas no futuro? Se não domarmos o medo, um medo que parece nascido de uma civilização que só descobriu agora que não é composta por seres imortais, sim.
A tele-escola é um erro tão grande como o teletrabalho. A escola, tal como a empresa, é um corpo intermédio da sociedade. Nós não somos indivíduos isolados, somos pessoas que fazem parte de corpos sociais, a família, a escola, o clube, a empresa, a rua, a vizinhança. Nós não somos átomos separados uns dos outros, precisamos da interação social para apreendermos a empatia. A empatia treina-se na escola, na ginástica, na natação. Não é possível treinar a empatia quando se está sozinho em casa a olhar para um ecrã. Além da empatia, a escola é fundamental para apreendermos o civismo, que é uma espécie de empatia alargada e política. Como é que se vai educar crianças no e para o civismo (conceito que implica um coletivo) quando tratamos cada criança como uma ilha separada de todas as outras? Parem com o experimentalismo que se esconde atrás do medo. Devolvam a escola e a infância aos nossos filhos.
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