terça-feira, 23 de novembro de 2021

UMA MÁQUINA DE MATAR PROFESSORES

Aquela tarde foi crucial. Há anos que os sinais se vinham avolumando. Tudo se tornara, todavia, mais doloroso naquelas semanas, com consequências mais acentuadas, quase irremediáveis. Ao longo do dia, fora oscilando entre a tranquilidade dentro da sala de aula, na presença gratificante dos alunos, e uma perturbação interior sempre que saía desse lugar protegido e acolhedor para outros espaços escolares, onde era obrigado a desenvolver tarefas insanas, de burocrata. Findo o dia, decidi não ir de imediato para casa. Virei à direita, estacionei o carro e entrei no banco do hospital. Fui atendido prontamente por uma médica cujo nome esqueci, mas a quem ficarei eternamente grato. Aplicada uma bateria de exames, tal era o meu estado de saúde, obrigou-me (é esse o termo) a ficar de baixa. Tive de reconhecer.

A “escola” estava a dar cabo de mim, ao fim de 25 anos inteiramente dedicados a ela.

Foi muitíssimo difícil assumir a derrota. Ao longo de meses em casa, com tratamento médico e consultas frequentes, tive de reconhecer a minha fragilidade, como vítima de “burnout”, cujas causas conhecia. Vi-me, sobretudo, obrigado a sublinhar que a satisfação e alegria sentida diariamente na sala de aula como professor já não era suficiente para abafar todo o resto. Esse resto não era, aliás, um “resto”. Era, sim, uma avalanche que de súbito caíra sobre mim – e, creio, tem caído sobre centenas ou milhares de docentes cujo brio profissional os tem posto em confronto com um “sistema” que visa destruir o cerne da escola portuguesa, da liberdade de ensino e da aprendizagem sólida e consequente.

Não sei se vale a pena listar as flechas, os tiros e os bombardeamentos que têm sido lançados dos vários organismos do Ministério da Educação contra a dignidade dos professores, contra a solidez e qualidade do conhecimento a construir nos alunos, contra a democracia nas escolas, contra a privacidade, a dignidade e a liberdade das famílias, contra a manutenção de um clima de paz intergeracional nas instituições de ensino, contra os alunos que esperam das salas de aula uma prática consequente, criativa e exigente, contra uma sociedade que deveria ter nas escolas viveiros de cidadãos conhecedores, conscientes e críticos. Tantas têm sido (no último quarto de século) essas munições que seria fastidioso apresentar o seu rol. As consequências estão, todavia, à vista. Três décadas ou quatro depois, voltámos a ter uma grave falta de professores nas escolas portuguesas. E só não há uma debandada geral dos alunos em direcção aos colégios privados que ainda conseguem levar o processo de ensino-aprendizagem a sério porque a generalidade da população portuguesa – mesmo da classe média – não tem dinheiro para pagar as mensalidades exigidas pelas instituições que não recebem apoio do Estado.

A escola pública portuguesa tem sofrido assaltos sucessivos de grupos de pressão que, directa ou indirectamente, se têm instalado nos feios prédios do Aterro lisboeta, à Avenida 24 de Julho. Quem conheça o meio, sabe bem quem o povoa e quem por lá tem influência e é ouvido. As políticas educativas que conseguem impor, graças a eficazes manobras de propaganda, de pressão ou de manipulação, não visam nem alguma vez visaram a qualidade da escola e das aprendizagens. Não querem saber dos alunos nem das famílias nem dos professores. Servem interesses académicos e pessoais, agendas políticas e sociais, estratégias económicas. Pretendem usar a escola como palco, como ferramenta de manipulação ideológica, como caixa multibanco. As técnicas de sedução são exímias. Chegam a cativar muitos docentes, aliciando-os, ludibriando-os, estimulando os seus instintos mais escusos. Sabem recompensá-los. Usam-nos, depois, como armas de arremesso contra os seus colegas que têm a ousadia de pensar pela sua própria cabeça e de afirmar, sem medo, que o rei vai nu, que as “maravilhas fatais” apresentadas em formações e deformações não passam de quinquilharia velha ou sem valor, destinada a enganar meio mundo e a outra metade. A maioria dos professores não é, todavia, parva. Percebe o que está a suceder. Tem percebido. Tem resistido como pode. Essa resistência é conhecida. E detestada por muitos directores, por demasiados colegas, por muitos pais inconscientes e, obviamente, pela tutela do Ministério. Há mais de duas décadas que o assalto vem crescendo.

Ninguém ignora que o assédio moral dentro das escolas é uma realidade constante e reiterada. Quase sempre, subtil. A definição, pescada na Wikipédia (não é preciso ir mais longe), assenta como uma luva no que se passa com muitos docentes portugueses: “a exposição […] a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas […] actos ocorridos durante a jornada de trabalho e no exercício das suas funções […] desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização […] ameaçando o seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho […]”. Com maior ou menor intensidade, é este o dia a dia de muitos professores. Pais envenenados, colegas manipulados ou interesseiros, hierarquias picadas pelo Ministério sujeitam quem quer fazer o seu trabalho honestamente a pressões inimagináveis, a humilhações de que poucos suspeitam. Visam destruir a sua autonomia científica, técnica e pedagógica que, apesar de garantida pelo Estatuto da Carreira Docente, vem sendo dinamitada há muito tempo, com especial intensidade nos últimos seis anos (nos quais têm pontificado os fiéis continuadores da guerrilha promovida com eficácia, entre 2005 e 2009, por uma senhora chamada Maria de Lurdes Rodrigues e seus comparsas). Junte-se a isto a subversão das regras de avaliação do trabalho dos docentes (alvo de um constante tráfico de influências e das mais mirabolantes manobras), o congelamento da sua progressão na carreira, a desconsideração do seu mérito efectivo (em benefício de um lambe-botismo atávico), a intromissão nas suas aulas (que chega ao ponto de impor “coadjuvantes” dentro das salas que, na prática, são muitas vezes vigilantes e bufos), o apagamento ou manipulação do rigor na avaliação e na disciplina – e não serão muitos os resistentes. Quem está perto da reforma, aposenta-se o mais depressa que pode, mesmo com prejuízo na carteira. Quem consegue encontrar uma porta aberta por onde possa fugir, muda de emprego, definitivamente ou durante algum tempo. Outros, infelizmente, não resistem e sofrem graves consequências na sua saúde, nem sempre remediáveis.

Alguém se admira de que os professores escasseiem com este sistemático mecanismo de “assassinato”? Quem se espanta quando, hoje em dia, poucos jovens querem formar-se para exercer a docência nas escolas públicas portuguesas? Só os parvos ou os interesseiros podem mostrar espanto. Só os incautos podem acreditar na hipocrisia daqueles que surgem, agora, muito preocupados (propondo medidas de papelão) quando, na realidade, são eles os responsáveis pela grave situação em que estamos mergulhados. Quem, como eu, se confronta directamente com o nefasto purgatório que é, hoje, a escola pública portuguesa já está à espera de tudo. Como pai e professor, sei do que falo e dolorosamente o escrevo, pois é preciso dar testemunho público, agora mais do que nunca. Seria bom que muitos outros o fizessem, saindo do seu silêncio angustiado ou do alívio das redes sociais e das salas de professores.

Tirei consequências daquele dia em que me vi obrigado a ir ao hospital, aceitando o que os vários médicos me impuseram durante meses e meses. Vi-me obrigado a assumir uma derrota que pôs em causa 25 anos de dedicação aos alunos. Hoje tenho saudades deles. Deles só. Muitos, como eu, voltariam de bom grado ao ensino se a escola voltasse a ser uma escola, deixando de ser um soez campo de batalha ideológico onde só os heróis resistem à estratégia de estupidificação geral que há muito está montada. Não sei o que o futuro nos trará. Não sei o que o futuro me trará quando e se um dia para lá voltar. Só um movimento de 180 graus poderá arrepiar o perigoso caminho que trilhamos. Só assim serão vencidos os “snipers” que vão eliminando os professores, substituindo-os por simulacros baratos sem autonomia, sem ética, sem exigência e sem pensamento próprio.
(escritor e investigador)

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